Conflito de Atribuições – Cível

 

Autos nº 0011456-84.2013.8.26.0100 -8ª Vara Cível do Foro Central da Capital

Suscitante: 7ª Promotora de Justiça de Direitos Humanos da Capital

Suscitada: Promotoria de Justiça Cível da Capital

 

Ementa:

1)   Conflito negativo de atribuições. 7ª Promotora de Justiça de Direitos Humanos da Capital (suscitante) e Promotoria de Justiça Cível da Capital (suscitada).

2)   Ação individual ajuizada por idosa, contra sua filha, pleiteando o afastamento da requerida do lar em função da prática de agressões verbais que perturbam seu sossego e de seu marido.

3)   Intervenção ministerial decorrente da qualidade da parte, por se tratar de situação envolvendo direito fundamental do idoso, que deve ser compreendida como situação de risco (art. 74, II da Lei 10.741/2003).

4)   Ato Normativo 593/2009-PGJ, de 05 de junho de 2009, que, conforme respectiva ementa, “Cria a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e a Promotoria de Justiça de Repressão à Sonegação Fiscal e dá outras providências”. Previsão atribuição dos Promotores de Direitos Humanos da Área do Idoso para propositura de ações em defesa de interesses individuais de idoso em situação de risco, no Foro Central da Capital (art. 3º, I, a). Previsão, ainda, da atribuição dos Promotores de Justiça Cíveis da Capital para atuar em feitos individuais de interesse dos idosos em tramitação no Foro Central (art. 3º, § 2º).

5)   Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento da intervenção ministerial por parte da suscitada.

Vistos.

1) Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante DD. 7ª Promotora de Justiça de Direitos Humanos da Capital e como suscitada a DD. 1ª Promotora de Justiça Cível da Capital.

O feito judicial no qual se verificou o conflito negativo (Autos nº 0011456-84.2013.8.26.0100, 8ª Vara Cível do Foro Central da Capital) resolve-se em ação individual ajuizada por idosa, contra sua filha, pleiteando o afastamento da requerida do lar em função da prática de agressões verbais que perturbam seu sossego e de seu marido.

Ao receber os autos com vista, a DD. Promotora de Justiça Substituta designada para atuar como Promotora Cível da Capital (suscitada) declinou de oficiar, assentando, em síntese, que a atribuição para oficiar no feito é da Promotoria de Direitos Humanos – Área de Defesa do Idoso (fl. 302).

A DD. 7ª Promotora de Justiça de Direitos Humanos (Idoso) suscitou o conflito negativo, sinalizando que a situação apresentada no feito se insere nas atribuições da Promotoria de Justiça Cível da Capital, por força do art. 296, § 2º, da Lei Complementar Estadual 734/93, bem como do art. 3º, § 2º, do Ato Normativo PGJ nº 593-PGJ, de 05 de junho de 2009 (fls. 304/306).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

Há, na hipótese em exame, ação individual ajuizada por idosa, contra sua filha, pleiteando o afastamento da requerida do lar em função da prática de agressões verbais que perturbam seu sossego e de seu marido.

Assim, a solução do presente conflito se resolve em esclarecer a quem cabe intervir como fiscal da lei em ação civil proposta por idoso em situação de risco, tornando manifestamente necessária a intervenção ministerial com fundamento no disposto no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 2003).

Cumpre, nesse particular, recordar que o Estatuto do Idoso prevê a atuação do Ministério Público como fiscal da lei nos casos em que não for parte, desde que se trate de idoso em situação de risco.

Nesse sentido o disposto no art. 74, II e no art. 75 do Estatuto do Idoso, transcritos a seguir:

“(...)

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

(...)

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de risco; (grifos nossos)

(...)

Art. 75. Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei, hipóteses em que terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de outras provas, usando os recursos cabíveis.

(...)”

Nesse sentido anota Oswaldo Peregrina Rodrigues (“Direitos do Idoso”, in Manual de Direitos Difusos, coord. Vidal Serrano Nunes Júnior, São Paulo, Verbatim, 2009, p. 525), em posição afinada com aquela que nos parece a melhor doutrina, que:

“(...)

Verifica-se, pois, que a atuação do Ministério Público nas hipóteses do artigo 74, incisos II, III e IV, como parte ativa do pleito judicial, e como custos legis (art. 75), está condicionada à situação de risco, pessoal ou social, do idoso.

(...)”

Em outros termos, é necessário, para justificar a intervenção ministerial como fiscal da lei em feitos individuais envolvendo pessoa idosa, que o caso concreto apresente alguma conotação diferenciada, além das hipóteses comuns ou corriqueiras que são verificáveis em conflitos de interesses envolvendo quaisquer pessoas.

É o que se dá, por exemplo, quando estão em jogo os direitos fundamentais indicados no próprio Estatuto do Idoso, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à saúde, etc., ou por peculiaridades do caso que revelem situação incomum, que evidencie a fragilidade da parte em razão de sua condição de pessoa idosa.

Assim, não é necessária a intervenção ministerial como fiscal da ordem jurídica em caso de ação de cobrança, só pelo fato de ser uma das partes pessoa idosa. Mas quando estão em jogo direitos fundamentais apontados no Estatuto do Idoso, fica fora de dúvida a necessidade da atuação ministerial.

Pois bem.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual 734/93) trata genericamente das atribuições das Promotorias em conflito nos dispositivos transcritos a seguir:

“(...)

Art. 295. Aos cargos especializados de Promotor de Justiça, respeitadas as disposições especiais desta lei complementar, são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público, nas seguintes áreas de atuação:

(...)

XIV – Promotor de Justiça de Direitos Humanos: garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos, das pessoas com deficiência, e da saúde pública; (incluído pela Lei Complementar Estadual 1.083, de 17 de dezembro de 2008)

(...)

Art. 296. Aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público, respectivamente na sua área e atuação penal ou cível, salvo aquelas que, na mesma comarca, forem de atribuição de cargos especializados ou de cargos com designação de determinada localidade.

(...)

§ 2º. Em face do disposto neste artigo, aos cargos de Promotor de Justiça Cível da Capital são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público na tutela de interesses de incapazes e nas situações jurídicas de natureza civil, em qualquer caso, desde que não compreendidas na área de atuação de cargos especializados ou de determinada localidade, bem como na proteção das fundações da comarca da Capital. (redação dada pela Lei Complementar Estadual 1.083, de 17 de dezembro de 2008) – (grifos nossos)

(...)”

Antes da criação da Promotoria de Direitos Humanos, por força da modificação operada na Lei Orgânica Estadual do Ministério Público pela Lei Complementar Estadual 1.083, de 2008, funcionava, nessa área de atuação, o então denominado “Grupo de Atuação Especial de Proteção ao Idoso (GAEPI)”, criado pelo Ato Normativo 126-PGJ, de 2 de outubro de 1997, posteriormente modificado pelo Ato Normativo 524-CPJ, de 30 de outubro de 2007.

O art. 3º, § 1º, do Ato Normativo 126-PGJ, de 2 de outubro de 1997 (com a redação decorrente do Ato Normativo 524-CPJ, de 30 de outubro de 2007), que regulava o funcionamento do então GAEPI, de fato já previa que a intervenção como fiscal da lei em feito em que houvesse interesse do idoso, e tramitasse no Foro Central da Capital, caberia à Promotoria de Justiça Cível da Capital. Confira-se o inteiro teor do dispositivo, a seguir transcrito:

“(...)

Art. 3º. Na Comarca da Capital, o grupo atuará até o final das ações judiciais envolvendo a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos por ele ajuizadas, bem como nas do mesmo gênero propostas por outros legitimados. (redação dada pelo Ato Normativo nº 524/2007-CPJ)

§ 1º. Nas ações individuais relativas ao idoso em situação de risco em tramitação no Foro Central da Comarca da Capital, a intervenção caberá ao Promotor de Justiça com atribuições no respectivo juízo. (redação dada pelo Ato Normativo nº 524/2007-CPJ)

§ 2º. Nas áreas de jurisdição dos foros regionais e distritais da Comarca da Capital, a tutela judicial e extrajudicial dos direitos individuais indisponíveis do idoso em situação de risco será de atribuição dos respectivos Promotores de Justiça Cíveis. (redação dada pelo Ato Normativo nº 524/2007-CPJ) – (grifos nossos)

(...)”

Ocorre que o Ato Normativo 126-PGJ, de 2 de outubro de 1997 (com as modificações decorrentes do Ato Normativo 524-CPJ, de 30 de outubro de 2007), naturalmente deveria ser revogado, na medida em que deixara de existir o GAEPI, sendo criada, por lei – como antes exposto – a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital.

E essa revogação de fato foi realizada, de forma expressa, pelo Ato Normativo 593/2009-PGJ, de 5 de junho de 2009, que, conforme respectiva ementa, “Cria a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e a Promotoria de Justiça de Repressão à Sonegação Fiscal e dá outras providências”.

O Ato Normativo 593/2009-PGJ, de 5 de junho de 2009, em seu art. 4º, I, revogou expressamente o ato regulamentar anterior. Pede-se vênia para transcrever tal dispositivo, para maior clareza:

“(...)

Art. 4º. Ficarão extintos, quando do provimento dos cargos de Promotor de Justiça que serão nomenclaturados para integrar a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, os Grupos de Atuação Especial de Proteção ao Idoso, da Saúde Pública e da Saúde do Consumidor, e às Pessoas com Deficiência, e o Grupo de Atuação Especial de Inclusão Social, quando então ficarão revogados:

I – o Ato Normativo nº 126-PGJ, de 2 de outubro de 1997, com a redação dada pelo ato Normativo nº 524-CPJ, de 30 de outubro de 2007; (grifos nossos)

(...)”

Dessa forma, não é possível invocar o art. 3º, § 1º do Ato Normativo 126-PGJ, de 2 de outubro de 1997 (com as modificações do Ato Normativo 524-CPJ, de 30 de outubro de 2007), como fundamento regulamentar para a afirmação de que caberia à Promotoria Cível da Capital a intervenção nas ações em que haja interesse de idosos, e que tramitem no Foro Central da Capital. E a razão para tal conclusão é objetiva: tal disposição foi revogada expressamente.

Entretanto, o regulamento que atualmente vigora, nessa matéria, reproduziu a disposição regulamentar anterior.

De fato, o Ato Normativo 593/2009-PGJ, de 05 de junho de 2009, que, conforme respectiva ementa, “Cria a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos e a Promotoria de Justiça de Repressão à Sonegação Fiscal e dá outras providências”, traz disposições relativas à tutela individual do idoso.

Naquilo que interessa à solução do presente conflito, é necessário destacar no Ato Normativo 593/2009-PGJ as seguintes disposições:

“(...)

Art. 3º. Compete também à Promotoria de Direitos Humanos:

I – na área de idosos:

(a) Exercer a tutela judicial e extrajudicial dos direitos individuais indisponíveis dos idosos em situação de risco residentes na área de jurisdição do Foro Central da Comarca da Capital; (grifos nossos)

(...)

§ 2º. Nas ações individuais relativas ao idoso em situação de risco em tramitação no Foro Central da Comarca da Capital, a intervenção caberá ao Promotor de Justiça com atribuições no respectivo Juízo. (grifos nossos)

§ 3º. Nas áreas de jurisdição dos Foros Regionais e Distritais da Comarca da Capital, a tutela judicial e extrajudicial dos direitos individuais indisponíveis do idoso em situação de risco será de atribuição dos respectivos Promotores de Justiça Cíveis. (grifos nossos)

(...)”

O que se observa, portanto, é que não há nenhuma lacuna normativa relativamente ao tema – tutela individual do idoso – sendo a matéria objetiva e claramente definida no ordenamento em vigor.

Em síntese, o que se extrai, conjuntamente, do art. 3º, I, a, bem como de seus §§ 2º e 3º, do Ato Normativo 593/2009-PGJ, é que:

(a) os Promotores de Justiça de Direitos Humanos da Capital com atribuição na área do Idoso, têm atribuições para propor ações individuais em defesa de direitos indisponíveis de idoso em situação de risco, em conformidade com a legitimação que lhes foi conferida pelo art. 74, I do Estatuto do Idoso, nos termos do art. 3º, I, a do Ato Normativo 593/2009-PGJ;

(b) aos Promotores de Justiça Cíveis do Foro Central da Capital, entretanto, caberá sempre intervir ações individuais relativas ao idoso em situação de risco em tramitação no Foro Central da Comarca da Capital, por força do art. 3º, § 2º do Ato Normativo 593/2009-PGJ – inclusive prosseguindo nas ações que tenham sido propostas pela Promotoria do Idoso, pois não se justifica a intervenção de dois órgãos ministeriais para o zelo pelo mesmo interesse;

(c) último e não menos importante, por força do art. 3º, § 3º do Ato Normativo 593/2009-PGJ, aos Promotores Cíveis dos Foros Regionais ficou destinada a atribuição tanto para propor ações em defesa de interesses individuais indisponíveis dos idosos, como ainda a intervenção, como fiscal, nos feitos em que haja interesse daqueles.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, DD. Promotora de Justiça Cível da Capital, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 21 de janeiro de 2014.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

 

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