Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0003015-94.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Ribeirão Preto

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 12.421, de 10 de novembro de 2010, de Ribeirão Preto

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 12.421, de 10 de novembro de 2010, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “institui utilização preferencial de software livre no âmbito do Município de Ribeirão Preto e dá outras providências”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Senhora Prefeita Municipal de Ribeirão Preto, tendo como alvo a Lei nº 12.421, de 10 de novembro de 2010, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “institui utilização preferencial de software livre no âmbito do Município de Ribeirão Preto e dá outras providências”.

Sustenta a autora que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.

Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 32).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 39 e 41/43).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 45/47).

É o relato do essencial.

A Lei nº 12.421, de 10 de novembro de 2010, de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que “institui utilização preferencial de software livre no âmbito do Município de Ribeirão Preto e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. A administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional de Ribeirão Preto, utilizará preferencialmente em seus sistemas e equipamentos de informática, programas abertos, livres de restrições proprietárias quanto à sua cessão, alteração e distribuição.

§ 1º. Entende-se por programa aberto aquele cuja licença de propriedade industrial ou intelectual não restrinja sob nenhum aspecto da cessão, distribuição, utilização ou alteração de suas características originais, assegurando ao usuário acesso irrestrito e sem custos adicionais ao seu código fonte, permitindo a alteração parcial ou total do programa para seu aperfeiçoamento ou adequação.

§ 2º. Para fins de caracterização do programa aberto, o código fonte deve ser o recurso preferencial utilizado pelo programador para modificar o programa, não sendo permitido ofuscar sua acessibilidade, nem tampouco introduzir qualquer forma intermediária como saída de um preprocessador ou tradutor.

§ 3º. Quando da aquisição de softwares proprietários, será dada preferência para aqueles que operem em ambiente de multiplataforma, permitindo sua execução sem restrições em sistemas operacionais baseados em software livre.

§ 4º. A implantação da preferência prevista nesta lei será feita de forma paulatina, baseada em estudos técnicos e de forma a não gerar perda de qualidade nos serviços prestados pelo Município.

Art. 2º. As licenças de programas abertos a serem utilizados pelo município deverão, expressamente, permitir modificações e trabalhos derivados, assim como a livre distribuição destes nos mesmos termos da licença do programa original.

Parágrafo único. Não poderão ser utilizados programas cujas licenças:

I – impliquem qualquer forma de discriminação a pessoas ou grupos;

II – sejam específicas para determinado produto, impossibilitando que programas derivados deste tenham a mesma garantia de utilização, alteração, distribuição; e

III – que restrinjam outros programas distribuídos conjuntamente.

Art. 3º. Será permitida a contratação e utilização de programas de computador com restrições proprietárias ou cujas licenças não estejam de acordo com esta lei, nos seguintes casos:

I – quando o software analisado atender a contento o licitado ou contratado, com reconhecidas vantagens sobre os demais softwares concorrentes, caracterizando um melhor investimento para o setor público;

II – quando da utilização de programa livre e/ou código de fonte aberto causar incompatibilidade operacional com outros programas utilizados pela administração.

Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará as condições, prazos e formas em que fará a transição, se necessária, dos atuais sistemas e programas de computador para aqueles previstos no artigo 1º, quando significar redução de custos a curto e médio prazo, e orientará as licitações e contratações, realizadas a qualquer título, de programas de computador.

Parágrafo único. A falta de regulamentação não impedirá a licitação ou contratação de programas de computador na forma da lei.

Art. 5º. Os recursos necessários à execução da presente lei decorrerão dos existentes no orçamento.

Art. 6º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

 (...)”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Decidir qual espécie de programa de informática será utilizado ou não, bem como definir prazos para transição de um sistema para outro diverso, ou mesmo se é conveniente o emprego de sistemas operacionais “abertos”, são matérias nítida e exclusivamente relacionadas à administração pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº Lei Municipal nº 12.421, de 10 de novembro de 2010, de Ribeirão Preto.

São Paulo, 27 de abril de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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