Parecer
Processo n. 0003299-68.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Suzano
Objeto: inconstitucionalidade
da Lei n. 4.505, de 30 de agosto de 2011, do Município de Suzano
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.505/11 do Município de Suzano. Obrigação de inclusão no formulário de ficha de atendimento (fa), utilizado pela rede pública de saúde, de campo específico para registrar suspeita ou confirmação de maus tratos e violência cometidas contra crianças, adolescentes e idosos. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo sobre a organização e o funcionamento dos serviços públicos. Reserva de Administração. Procedência da ação. É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que obriga a mencionada inclusão no formulário de Ficha de Atendimento (FA), por se situar a matéria tanto no âmbito da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo sobre atribuições e funções dos órgãos da Administração Pública, quanto na própria reserva de Administração, decorrentes do princípio da separação de poderes (arts. 5º; 24, § 2º, 2; e 47, II, XIV e XIX, a, da CE).
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
contestando a Lei n. 4.505, de 30 de agosto de 2011, do Município de Suzano, de
iniciativa parlamentar, que obriga a inclusão no formulário de Ficha de
Atendimento (FA), utilizado pela rede pública de saúde, de campo específico
para registrar suspeita ou confirmação de maus tratos e violência cometidas
contra crianças, adolescentes e idosos, sob
alegação de violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição Estadual.
Foi deferido o pedido liminar, suspendendo “ex
nunc” a vigência da Lei n. 4.505/11, do Município de Suzano (fls. 23/25).
A douta Procuradoria-Geral do
Estado declinou da defesa do ato (fls. 33/35).
O Presidente da Câmara dos Vereadores prestou
informações (fls. 38/39).
É o relatório.
A Lei n. 4.505, de 30 de agosto de 2011, do
Município de Suzano, que “dispõe sobre a inclusão no formulário de Ficha de
Atendimento (FA), utilizado pela rede pública de saúde, campo específico para
registrar suspeita ou confirmação de maus tratos e violência cometidas contra
crianças, adolescentes e idosos, e dá outras providências”, apresenta a
seguinte redação:
“Art. 1º - O Poder Executivo Municipal, através da
Secretaria Municipal de Saúde, tomará as providências cabíveis para incluir
campo destinado a registrar suspeita ou confirmação de maus tratos e violência
cometidas contra crianças, adolescentes e idosos, no formulário de Ficha de
Atendimento (FA), utilizado pelas unidades da rede pública de saúde.
Art. 2º - Caberá à direção da Secretaria Municipal
de Saúde, através das unidades da rede pública de saúde, encaminhar cópia do
formulário de ficha de atendimento (FA), para as autoridades competentes sempre
que houver, no campo específico criado por esta Lei, registro de suspeita ou
confirmação de maus tratos e violência cometidas contra idosos, crianças e
adolescentes.
Art. 3º - Fica a Secretaria Municipal de Saúde
autorizada a utilizar o formulário de Ficha de Atendimento (FA), na sua forma
atual, até o término do estoque existente.
Art. 4º- O Executivo regulamentará a presente
Lei no prazo de 60 (sessenta) dias, a
contar da data de sua publicação.
Art. 5º - As despesas decorrentes da execução
dessa Lei correrão por conta das doações orçamentárias próprias da LOA (Lei
Orçamentária Anual) 2010, Secretaria Municipal de Saúde (08.00.00), Funcional
10.302, Programa 1602- Atenção Especializada em Saúde, Ação 6101-Manutenção de
Serviços de Atenção Especializada.
Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua
publicação, revogadas as disposições em contrário”.
Denota-se, na lei contestada, a
violação ao princípio da separação dos poderes pela invasão da reserva de
iniciativa do Chefe do Poder Executivo e pela usurpação da reserva da
administração, porquanto disciplinou atribuições e funções dos órgãos da
Administração Pública, o que manifesta sua incompatibilidade com os arts. 5º;
24, § 2º, 2; e 47, II, XIV e XIX, a,
da Constituição Estadual.
É
ponto pacífico que “as regras do processo
legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa
reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF,
ADI nº 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
Como desdobramento
particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição
Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2,
iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na
órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das
Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto
no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos
órgãos da Administração Pública direta.
Também prevê, o art. 47
(aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), competência privativa
do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do
Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração
e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias
de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.
O
art. 47 da CE, em seu inciso II, confere ao Chefe do Poder Executivo o
exercício, com auxílio dos Secretários, da direção superior da administração. O
inciso XIV lhe comete a prática dos demais atos de administração, nos limites
da competência do Poder Executivo. Por fim, a alínea a do inciso XIX lhe fornece a prerrogativa de dispor mediante
decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando
não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”,
em preceito semelhante ao art. 84, VI, a,
da Constituição Federal.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual. Pois, ao
instituir a referida obrigação, estabelece regras que respeitam a organização e
o funcionamento do Poder Executivo, e impõem atribuição ao Poder Executivo.
A
jurisprudência reconhece o vício de inconstitucionalidade em hipóteses
similares, verbi gratia:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC nº 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI, da Lei nº 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI nº 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI nº 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n° 10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI nº 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação
direta, declarando-se a
inconstitucionalidade da Lei n. 4.505, de 30 de agosto de 2011, do
Município de Suzano, que “dispõe sobre a inclusão no formulário de Ficha de
Atendimento (FA), utilizado pela rede pública de saúde, campo específico para
registrar suspeita ou confirmação de
maus tratos e violência cometidas contra crianças, adolescentes e idosos, e dá
outras providências”
São Paulo, 19 de abril de 2012.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb