Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0003462-82.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Rosana

Objeto: Lei n. 1.204/2010, do Município de Rosana

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 1.204/10 do Município de Rosana. Criação do Portal da Transparência. Inexistência de violação do princípio da separação de poderes. Iniciativa legislativa concorrente. 1. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo que não se presume por ser direito estrito, exigindo explícita previsão normativa sobre o assunto. 2. Lei disciplinadora da transparência de atos administrativos, aprimorando a publicidade estatal, independe de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual, visto que não versa sobre criação, estruturação e atribuições dos órgãos da Administração Pública. 3. Inexistência da criação de novo encargo sem cobertura financeira. 4. Usurpação de competência legislativa da União (art. 22, I, CF).  5. Procedência parcial da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 1.204/10, do Município de Rosana, de iniciativa parlamentar, que cria o Portal da Transparência como meio oficial de divulgação de dados e informações pelos órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, sob a alegação de ofensa aos arts. 2º; 5º, inc. XXXIII; 37, § 3º, inciso III; 21, §§ 3º e 4º; 22, inciso I; 30, incisos I e II da Constituição Federal e arts. 5º, §§ 1º e 2º; 32, § único; 33, incisos II, III, V, IX, XIII e 150 da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 207).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 216/229, em defesa na norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 256/257).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

         É o relatório.

         Não prospera a arguição de violação ao princípio da separação de poderes, contido no art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

         A lei local impugnada cuida de elevado, basilar e radical assunto na senda da organização político-administrativa municipal: a transparência administrativa que se articula por um de seus subprincípios (a publicidade), ajustando à modernidade tecnológica o cumprimento da diretriz de diafanidade da gestão dos negócios públicos.                  

         Não se trata, pois, de matéria que mereça trato normativo por impulsão exclusiva do Chefe do Poder Executivo. Com efeito, a lei local cuida, por excelência, da concretização do princípio da transparência, inscrito no art. 37 da Constituição Federal e no art. 111 da Constituição Estadual sob o nome de publicidade, como afirma a doutrina (Wallace Paiva Martins Junior. Transparência administrativa, São Paulo: Saraiva, 2004), fornecendo maior grau de visibilidade à res publica, tendo como baliza que, como salientou o eminente Ministro Celso de Mello em histórico julgamento, “o novo estatuto político brasileiro - que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta - consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado” (RTJ 139/712).

         Portanto, é indevido concluir que esse assunto seja da reserva do Poder Executivo ou de sua iniciativa legislativa exclusiva.

         Ora, a matéria situa-se na iniciativa comum ou concorrente. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

         Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).           

         Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144). Não se verifica nesse preceito reserva de iniciativa legislativa instituída de maneira expressa, assim como no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

         Registro, na oportunidade, que alegação dessa espécie foi rechaçada no Supremo Tribunal Federal ao resumir que:

“Lei disciplinadora de atos de publicidade do Estado, que independem de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual, visto que não versam sobre criação, estruturação e atribuições dos órgãos da Administração Pública. Não-incidência de vedação constitucional (CF, artigo 61, § 1º, II, e)” (STF, ADI-MC 2.472-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Correa, 12-03-2002, v.u., DJ 03-05-2002, p. 13).

         Tampouco é admissível a arguição de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual. A lei local não criou encargo novo para a Administração Pública municipal porque, como bem assinalado no respeitável despacho denegatório da liminar, a divulgação oficial de informações, para além da publicação dos atos da Administração no órgão oficial (mantida pela lei), já existe; objetiva-se apenas, com a lei impugnada, prescrever conteúdo suficiente da publicidade governamental. Ademais, o exame dessa matéria demandaria análise de fato, que desborda dos estreitos limites desta via.

         No entanto, um único reparo merece ser feito.

         Ocorre que o art. 11 da Lei impugnada assim dispõe:

         "Negar, omitir, retardar ou adulterar dados e informações de interesse público ou prestar declarações falsas sujeitará os responsáveis, inclusive o Chefe do Poder Executivo, às penalidades do art. 4º, inciso VII do decreto lei 201/67."

No caso vertente, como se pode observar, referido ato normativo inseriu na Lei impugnada hipóteses de infração político-administrativa do Prefeito e de qualquer outro que da forma prevista se conduzir, sujeitando-os à perda do cargo como penalidade.

Agiu, entretanto, em desacordo com as Constituições Federal e Paulista, pois a definição dos crimes de responsabilidade é matéria da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por força do art. 22, I, da CR/88.

A questão, inclusive, foi pacificada pelo E. STF, que editou a respeito a súmula nº 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento”.  

Vários foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula, em Sessão Plenária do E. STF, de 26/11/2003 (cf. DJ de 9/12/2003, p. 1; DJ de 10/12/2003, p. 1; DJ de 11/12/2003, p. 1.).  Entre tais julgados, podemos ressaltar os seguintes: ADI 1628 MC, DJ de 26/9/1997, RTJ 166/147; ADI 2050 MC, DJ de 1º/10/1999, RTJ 171/807; ADI 2220 MC, DJ de 7/12/2000, RTJ 176/199; ADI 1879 MC, DJ de 14/5/2001, RTJ 177/712; ADI 2592, DJ de 23/5/2003; ADI 1901, DJ de 9/5/2003.

Em cada um desses precedentes ficou claro o posicionamento da Suprema Corte no sentido de que cabe ao legislador federal tipificar as infrações político-administrativas e traçar as normas para o respectivo processo e julgamento.

É assente deste modo que normas federais anteriores à Constituição de 1988 que tratam da matéria foram recepcionadas pela Carta Magna, ao menos na parte em que não são com ela incompatíveis.

Deste modo, a legislação municipal que trata de tais temas é inconstitucional, devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de controle concentrado de normas.

Necessário recordar que, de conformidade com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição” (g.n.).

Desse dispositivo se extrai que os princípios estabelecidos pela Constituição Federal são de observância obrigatória pelos Estados e Municípios.

A mesma idéia pode ser extraída do art. 29, caput, da Constituição Federal, que determina que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos” (g.n.).

Ora, a repartição constitucional de competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, é um dos elementos que, de modo concreto, delimita e caracteriza o princípio federativo, sendo certo que este é um dos princípios fundamentais ou estabelecidos pela Constituição Federal, ditando, pois, o exato perfil do Estado Brasileiro.

Traçando esse parâmetro, é viável afirmar que o princípio federativo, por força do art. 1º e 18º da CR/88, por remissão do art. 144 da Constituição do Estado, bem ainda por expressa previsão no art. 1º da própria Carta Bandeirante, é de observância obrigatória, permitindo o controle abstrato de normas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado.

Atos normativos que violam a repartição constitucional de competências desrespeitam não apenas regras relativas à divisão do poder de editar normas infraconstitucionais, mas desautorizam diretamente uma das opções fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, o próprio princípio federativo.

Nesse ponto, é relevante anotar que esse Tribunal de Justiça acolhe, com tranquilidade, a tese de que é possível declarar a inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido na Constituição Federal, como comprova recente julgado (ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. Des. Renato Nalini). Do voto do Des. Walter de Almeida Guilherme se extrai definitiva lição sobre o tema:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)”

Em caso ainda mais recente, o C. Órgão Especial julgou procedente ADIN ajuizada pelo Prefeito de Monte Alto em face de norma regimental que determinava o afastamento do Alcaide denunciado por infração político-administrativa, reafirmando, na ementa e no corpo do v. Acórdão, que os Municípios não têm competência para legislar sobre infrações político-administrativas, sendo competência exclusiva da União (ADIN – 161.312-0/0, j. 3.12.2008, rel. Des. Paulo Travain).

Diante do exposto, opino pela parcial procedência desta ação direta tão somente para ser declarada a inconstitucionalidade do art. 11 da Lei n. 1.204/10, do Município de Rosana, por violação do art. 144 da Constituição do Estado, mantendo-se intocados todos os seus demais dispositivos.

São Paulo, 26 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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