Parecer
Autos nº. 0003868-06.2011.8.26.0000
Requerente: Prefeita Municipal de Bastos
Objeto: Lei nº 2.236, de 08 de julho de 2010, do Município de Bastos
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que "Dispõe sobre o recolhimento de veículos ou de partes de Componentes de Estruturas de Veículos Abandonados nas Vias ou Logradouros Públicos do Município de Bastos e dá outras providências". Iniciativa parlamentar. 2) Ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (arts. 5º e 47, II e XIV, da Constituição Paulista). 3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art. 25 da Constituição Paulista). 4) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pela Prefeita Municipal de Bastos, tendo por objeto a Lei nº 2.236, de 08 de julho de 2010, daquele Município, que “Dispõe sobre o recolhimento de veículos ou de partes de Componentes de Estruturas de Veículos Abandonados nas Vias ou Logradouros Públicos do Município de Bastos e dá outras providências”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 15 e vº).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 28/32, em defesa da constitucionalidade da norma.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 25/26).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em
que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se
transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional.
Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:
“Art.1º - Todos os veículos, carcaças, chassi, ou partes de veículos abandonados em vis ou logradouros públicos serão removidos pelo setor competente da Prefeitura Municipal de Bastos.
Art.2º - É considerado veículo abandonado:
(...)
Art.3º - Caracterizando-se o abandono, o setor competente da Prefeitura Municipal de Bastos identificará o veículo com um adesivo, devendo constar neste o prazo de 05 (cinco) dias para que o (a) proprietário (a) ou detentor (a) retire o veículo, sob pena de remoção, conforme o disposto nesta Lei.
(...)
Art. 4º - Quando for remover o veículo, a carcaça, o chassi, ou partes de veículos, o setor competente da Prefeitura Municipal, preencherá uma ficha numerada para registrar o abandono e a remoção, constando todos os dados possíveis de visualizar, tais como:
(...)
Art. 5º - Depois de consumada a remoção, o setor competente da Prefeitura Municipal imediatamente notificará o (a) proprietário (a) ou o (a) detentor (a) para que, no prazo de 10 (dias), a partir do recebimento da notificação e mediante apresentação de documento do veículo, da carcaça, do chassi, ou partes de veículos, faça o devido resgate, sob pena das sanções contidas nesta Lei."
A lei, de
iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas
pela Administração Pública, indicando a forma de procedimento para o
cumprimento da previsão legal que culmina com o recolhimento de veículos
abandonados nas vias públicas do Município.
Não há dúvida de que, a iniciativa parlamentar, ainda
que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e
como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47,
incs. II e XIV, da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como na
jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução
de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo,
de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos
revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese analisada, criou
obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a
tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional,
por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do
Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, e envolve o planejamento, a
direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes
Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e
independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com
usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c
o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem, na prática, a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a
inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os
poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, Rel. Des. Armando Toledo, j. 20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, Rel. Des. Viana Santos, j. 05.03.2008).
E,
mais
recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn nº
990.10.073579-9:
"Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.
Evidente o fumus boni juris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.
Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.
Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal." (ADI nº 990.10.073579-9, Rel. Des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)
Não bastasse
o acima exposto, esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a
inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder Público, sem a
indicação das respectivas fontes de receita, como no caso em tela, em violação
ao disposto no art. 25 da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de
exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI nº 134.844-0/4-00, Rel.
Des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI nº 135.527-0/5-00, Rel. Des.
Carlos Stroppa, j. 03.10.2007, v.u.; ADI nº 135.498-0/1-00, Rel. Des. Carlos
Stroppa, j. 03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.236, de 08 de julho de 2010, do Município de Bastos.
São Paulo, 31 de maio de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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