Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0003873-28.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Bastos

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.276, de 08 de novembro de 2010, de Bastos

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 2.276, de 08 de novembro de 2010, de Bastos, que “dispõe sobre a criação do Projeto Mais Verde e dá outras providências”.  Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47, II e XIV; 144 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Prefeita Municipal de Bastos, tendo como alvo a Lei Municipal nº 2.276, de 08 de novembro de 2010, deste Município, que “dispõe sobre a criação do Projeto Mais Verde e dá providências”, fruto de iniciativa parlamentar.

A autora noticia que a lei decorre de projeto subscrito por Vereador e que, por isso, padece de inconstitucionalidade, posto que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que disponham sobre a administração de imóveis pertencentes ao Município e sobre o uso e a ocupação do solo.

Foi deferida a liminar, para suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 12).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo impugnado (fls. 23/25).

A Câmara Municipal prestou informações em defesa da norma impugnada (fls. 27/31).

É o relato do essencial.

A lei impugnada cria no Município de Bastos o Projeto Mais Verde e assim se encontra redigida:

                                                                                                                                                                                                                                 

“Art. 1º  Fica o Poder Executivo autorizado, através da Secretaria Municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Abastecimento, a implantar o Projeto Mais Verde, viabilizando recuperação de áreas desmatadas, inclusive a recuperação de matas ciliares dos córregos locais, bem como prover a arborização em áreas públicas urbanas e nas margens das Estradas Vicinais do Município de Bastos.

Art. 2º O Poder Executivo manterá em pleno funcionamento um viveiro municipal de mudas, visando produzir a quantidade necessária de mudas de árvores (frutíferas e não frutíferas) a serem plantadas em face da implantação do projeto mais verde e de outros projetos já existentes;

Art. 3º Fica o Poder Executivo autorizado, através da Secretaria Municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Abastecimento, a desenvolver campanhas incentivando o plantio de árvores no Município de Bastos.

Art. 4º Fica o Poder Público autorizado, através da secretaria Municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Abastecimento, a doar mudas de árvores aos cidadãos residentes em Bastos, desde ele se responsabilize pelo plantio e cuidado das mudas.

Art. 5º O Poder Executivo poderá, por meio da Secretaria Municipal de Agricultura, Meio Ambiente e Abastecimento, firmar parceria com as Escolas de Bastos, visando engajar os alunos no plantio de mudas de árvores em áreas desmatadas, às margens das estradas vicinais, inclusive na recuperação das matas ciliares.

Art. 6º O Poder Executivo tem 30 (trinta) dias para implantar o Projeto Mais Verde, a partir da publicação desta Lei.

Art. 7º As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de verbas próprias, constantes no Orçamento vigente e, se necessário, serão suplementadas.

Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

Dita lei, segundo penso, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara instituiu um programa  criando obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

O legislador está instituindo serviço público.

Não há dúvida, porém, que a criação e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência do serviço. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação e funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar um programa e fixar as regras para a sua execução. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Com efeito, ao Executivo cumpre com exclusividade formular a opção política de execução de programas ou delegá-los a particulares, como também celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

Nota-se, por fim, embora não tenha sido mencionado na inicial, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição do programa gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.276, de 08 de novembro de 2010, do Município de Bastos, que “dispõe sobre a criação do projeto Mais Verde e dá outras providências”.

São Paulo, 19 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

vlcb