Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0003878-50.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeitura Municipal de Bastos

Assunto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.299/2010, do Município de Bastos, que veda a distribuição da “pílula do dia seguinte” pela rede pública municipal de saúde como método de interrupção da gravidez ou contraceptivo

 

Ementa:

1. Inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.299/2010, do Município de Bastos, que veda a distribuição da “pílula do dia seguinte” pela rede pública municipal de saúde como método de interrupção da gravidez ou contraceptivo.

2. É vedada a disciplina, em lei local, da proteção e defesa da saúde, posto ser matéria da competência legislativa concorrente da União e dos Estados. Inconstitucionalidade também verificada por ser lei de iniciativa parlamentar regulando matéria administrativa concernente à organização e ao funcionamento de serviço público, da competência do Poder Executivo. Procedência da ação: violação aos arts. 1º, 5º, 24, § 2º, 47, II e XIX, a, 144, 219, parágrafo único e 233, V, da Constituição Estadual.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Bastos, tendo como alvo a Lei Municipal n. 2.299/2010, de 13 de dezembro de 2010, que estabelece meios de defesa dos direitos do nascituro e da criança bastense.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, eis que disciplina e confere atribuições a órgãos do serviço público.

Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 14/16).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 27/29).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 31/35).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal n. 2.299/2010, de 13 de dezembro de 2010, que estabelece meios de defesa dos direitos do nascituro e da criança bastense, dispõe, em seu art. 3º:

“Art. 3º. Fica proibida a distribuição da ‘pílula do dia seguinte’/Levonorgestrel pela rede pública municipal de saúde como método de interrupção da gravidez ou contraceptivo”.

Ao inserir no ordenamento jurídico local legislação que impede as mulheres de terem acesso a esse medicamento contraceptivo, o município de Bastos acabou por invadir campo de competências da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, XII, da CF). Essa matéria desborda da competência local e suplementar que o Município detém, consoante a regra inscrita no art. 30, I e II, da Carta Federal.

Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local” (Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743).

A União já legislou sobre o assunto.

 Foi criada a Lei nº 8.080/90, que “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, assim como a Lei nº 9.782/99, que “Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências”.

Para Hely Lopes Meirelles:

“Estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa – e inútil, por incompleta – a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização, etc; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local.”(Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 12ª ed., p. 135).

Da leitura da lei aqui inquinada de inconstitucional, conclui-se que a proibição da distribuição da chamada “pílula do dia seguinte” não é, predominantemente, um interesse local.

De fato, no Brasil, em regra, quem executa as leis advindas da competência privativa é o próprio ente que a detém; e quem executa materialmente a proteção e defesa da saúde, além de legislar sobre essa matéria, é a União (CF, arts. 24, XII e 200, I), e não o Município, que não pode se valer do disposto no artigo 30 da mesma Carta Maior.

Nem se diga que se está adotando como objeto paradigma a Constituição Federal.

É que, nos termos do art. 144 da Carta Paulista, os municípios têm autonomia legislativa, mas ficam compelidos a atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual

Esse Colendo Órgão Especial tem reiteradamente aplicado tal dispositivo como suporte exclusivo e necessário para a eliminação de regras que hostilizam o texto fundamental federal. Nesse sentido, caminhou decisão relatada pelo eminente Desembargador Oliveira Ribeiro, em parte aqui transcrita:

        “Além disso, é de se ver que em abono do propósito declaratório da inconstitucionalidade do artigo discrepante, a Constituição do Estado de São Paulo, sem repetir expressamente a fixação de ‘quorum’ de dois terços previsto na Constituição da República, não deixou de especificar o seu entendimento no sentido de impor observância desta exigência, fazendo-o com clareza posto que de modo indireto.

           Eis o texto do seu artigo 144: Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição” (Adin nº 097.085-0/1-00, Rel. Des. Oliveira Ribeiro, j. 10/3/2004).

O mesmo posicionamento foi adotado na decisão proferida por esse Colendo Colegiado, na Adin nº 108.578-0/4, em que foi relator o eminente Desembargador Denser de Sá, julgada em 23/3/2005.

Não bastasse, segundo a regra inscrita no art. 223, V, da Constituição Paulista, cabe ao Sistema Único de Saúde, nos termos da lei, além de outras atribuições, “a organização, a fiscalização e controle da produção e distribuição dos componentes farmacêuticos básicos, medicamentos, produtos químicos, biotecnológicos, imunobiológicos, hemoderivados e outros de interesse da saúde, facilitando à população o acesso a eles”.

A lei em comento é totalmente avessa a esse regramento constitucional, que assegura à população o acesso a todo e qualquer medicamento que lhe proveja o bem estar e a saúde.

Além disso, importa observar que essa legislação teve origem em projeto de iniciativa parlamentar.  Mas, a iniciativa de leis que tratem de conferir atribuições a órgãos governamentais deve ter origem em processo legislativo iniciado pelo Poder Executivo, nos termos do artigo 24, § 2º, itens  1 e 2, da Constituição do Estado de São Paulo, que assim dispõe:

“Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

..........................................................................................

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no artigo 47, XIX.” (g.n.)

Esse modelo legislativo busca seu fundamento de validade na previsão expressa pelo art. 61, § 1º, II, a e e, bem como no art. 84, VI, da Constituição Federal.

Ao impedir o Executivo de distribuir as pílulas de emergência à população, o Legislativo de Bastos deu verdadeira ordem ao Prefeito, impedindo-o de gerir livremente os assuntos de interesse da administração.

A distribuição de pílulas chamadas de ''anticoncepção de emergência''  é tema que não se insere na cláusula do ''interesse local'' (art. 30, I, da Constituição da República) sendo, como é obvio, um assunto de interesse geral ou nacional.  Sequer competência suplementar, no caso, dispõe o Município (art. 30, II, da Constituição da República), pois, como explica Fernanda Dias Menezes de Almeida:

 ''...só cabe a suplementação em assuntos que digam respeito ao interesse local. Nenhum sentido haveria, por exemplo, em o Município suplementar legislação federal relativa ao comércio exterior ou relativa à  nacionalidade  ou naturalização.'' (''Competências na Constituição de 1988'', 2.ª ed., São Paulo,  Atlas, p. 156).

Sobremais, não se pode esquecer que o Município somente pode suplementar a competência privativa de outros entes federados quando   necessário ao exercício de sua competência material privativa, o que não é o caso, obviamente.  Diz a mesma autora que:

“(...) terá cabimento a legislação municipal suplementar quando o exercício da competência material privativa do Município depender da observância de normação heterônoma. Isto poderá ocorrer em relação à legislação federal e à legislação estadual. Quanto à legislação federal, o Município complementará ou suprirá normas gerais da União ao exercer, por exemplo, a competência privativa de instituir os próprios tributos. De fato, a instituição de tributos, por qualquer das esferas, se deve pautar pelas normas gerais de Direito Tributário postas pela União. Nesse caso, o Município estabelecerá as normas tributárias específicas (competência complementar) e poderá até mesmo editar normas gerais, admitindo-se, em tese, que à União se omita em expedi-las (competência supletiva). É possível ainda a legislação suplementar do Município nas hipóteses em que, para o atendimento de competência material privativa, o Município tenha que observar lei federal que à União caiba editar no exercício de sua competência legislativa plena”.

Com efeito, restou vulnerado o princípio da separação dos poderes inscrito no art. 5º da Constituição Estadual. Em assim sendo, a lei examinada é inconstitucional, por afronta aos arts. 1º; 24, § 2º, 1 e 2; 144; 219, parágrafo único, 1 e 223, V, da Constituição Bandeirante.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.299/2010, de 13 de dezembro de 2010, do Município de Bastos.

 

São Paulo, 07 de junho de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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