Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0004379-04.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Jacareí

Objeto: Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, do Município de Jacareí

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, do Município de Jacareí, que altera a Lei nº 4.854 que “dispõe sobre os procedimentos de segregação, armazenamento, transporte e disposição final dos resíduos sólidos da construção civil, estabelecendo responsabilidades, infrações e penalidades, e dá outras providências". Projeto de lei de Vereador. Matéria, contudo, cuja iniciativa é privativa do Prefeito. Alegada ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Jacareí, tendo por objeto a Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, daquele município, que “dispõe sobre os procedimentos de segregação, armazenamento, transporte e disposição final dos resíduos sólidos da construção civil, estabelecendo responsabilidades, infrações e penalidades, e dá outras providências".

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 212/213).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 216/218.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 274/275).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Desta forma dispõe a vergastada Lei:

"Art. 1º O artigo 6º da Lei nº 4.854, de 7 de janeiro de 2005, passa a vigorar com mais um parágrafo, que será o 5º, com a seguinte redação:

'Parágrafo 5º Considerando que a coleta de resíduos sólidos da construção civil é um serviço de interesse público, fica permitida a coleta destes resíduos também nas ruas exclusivamente locais e residenciais, de trânsito local, independentemente se o peso, incluindo o caminhão, a caçamba e o entulho, ultrapassar a 4 (quatro) toneladas'.

Art. 2º No inciso I do artigo 9º da Lei nº 4.854, de 7 de janeiro de 2005, onde consta 'conforme estabelecido no artigo 25 desta Lei', passa-se a constar 'conforme estabelecido no artigo 26 desta Lei'.

Art. 3º O artigo 10 da Lei nº 4.854, de 7 de janeiro de 2005, passa a vigorar com mais um parágrafo, que será o 2º, com a redação abaixo, passando o atual parágrafo único a ser o 1º:

'Parágrafo 2º. Não se aplica o disposto no caput e parágrafo 1º deste artigo quando se tratar do inciso I do artigo 9º desta Lei.'

Art. 4º Fica alterado o inciso I do artigo 11 da Lei nº 4.854, de 7 de janeiro de 2005, que passa a vigorar com a seguinte redação:

'I - em distância inferior a 30m (trinta metros) de curvas;'

Art. 5º O artigo 16 da Lei nº 4.854, de 7 de janeiro de 2005, passa a vigorar acrescido de um parágrafo, que será único, com a seguinte redação:

'Parágrafo único. Os locais indicados e estabelecidos para a disposição final dos resíduos ou entulhos, de acordo com o caput deste artigo, deverão ficar abertos durante o dia todo, inclusive no horário de almoço.'

Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."

Em que pesem os elevados propósitos que a inspiraram, a Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, do Município de Jacareí é, de fato, incompatível com os artigos 5º e 47, incs. II e XIX, "a", da Constituição do Estado, abaixo reproduzidos:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

 (...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;"

A impugnada Lei, além de ditar à Administração os procedimentos de segregação, armazenamento, transporte e disposição final dos resíduos sólidos da construção civil, traz também maiores ônus em virtude do estabelecimento de responsabilidades, infrações e penalidades, o que importa em invasão da seara administrativa.

Em realidade, a administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que tem na lei seu mais relevante instrumento[1], participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2]. Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que:

"A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos ou autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (...). A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções. Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º.). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o Legislativo provê 'in genere', o Executivo 'in specie', a Câmara edita normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental (...) Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa privativamente, à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § I, c/c 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.'[3]

Reitere-se que a lei em análise se refere aos procedimentos de segregação, armazenamento, transporte e disposição final dos resíduos sólidos da construção civil, cuja matéria é da alçada do Poder Executivo, por importar em atos de gestão ordinária da Administração Pública, tratando-se, pois, de matéria que a Constituição reservou à iniciativa do Executivo, não podendo o Legislativo tomar a iniciativa a respeito.

A Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições do artigo 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Por isso, a solução deste processo é a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, do Município de Jacareí, que altera a Lei nº 4.854 que “dispõe sobre os procedimentos de segregação, armazenamento, transporte e disposição final dos resíduos sólidos da construção civil, estabelecendo responsabilidades, infrações e penalidades, e dá outras providências", pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5.484, de 10 de setembro de 2010, do Município de Jacareí.

São Paulo, 27 de abril de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

       Subprocurador-Geral de Justiça

         - Jurídico -

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[1] Christian Starck. 'El Concepto de ley en la constitucion alemana', p. 73, CEC, Madrid, 1979.

[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo' do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 12ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 576.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.