Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0006244-28.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei nº 4.493, de 27 de junho de 2011, do Município de Suzano

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 4.493, de 27 de junho de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais ou mobilidade reduzida nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares, e dá outras providências”. Matéria de competência concorrente da União e dos Estados (art. 24, XIV da CF), excluídos os Municípios, que vem regulamentada na Lei Federal n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e no Decreto n.º 5.296, de 02 de dezembro de 2004. Precedentes do STF. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que estabelece ação concreta à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47; II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 4.493, de 27 de junho de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais ou mobilidade reduzida, nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares, e dá outras providências”.

 O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, divisando ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado.

Argumenta, também, que a Lei em questão cria despesa pública sem a devida indicação dos recursos disponíveis para dar atendimento a tais encargos.

Por fim, afirma competir privativamente à União legislar sobre direito civil e direito comercial (CF, art. 22, I), sendo que o Município não se insere nesse rol. Por essa razão são federais todas as normas que dispõem acerca da acessibilidade.

O pedido de medida liminar foi deferido (fls. 22/23).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 35/37).

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações (fls. 39/40).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente. Vejamos.

A Lei n. 4.493, de 27 de junho de 2011, do Município de Suzano que “dispõe sobre a acessibilidade de pessoas portadora de necessidades especiais ou mobilidade reduzida nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares, e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Por esta Lei, fica obrigada a existência de espaço para acomodação de cadeiras de rodas e assentos reservados para pessoas portadoras de necessidades especiais e mobilidade reduzida, nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares localizados no Município de Suzano.

Art. 2º - O não cumprimento ao disposto na presente Lei sujeitará o estabelecimento infrator às seguintes penalidades, respectivamente:

I - notificação por escrito, com prazo de 90 (noventa) dias para a adequação ao disposto nesta Lei;

II- multa de até 100 (cem) UFM’s em caso de não cumprimento ao disposto na presente lei, valor este que que deve ser destinado ao Poder Executivo Municipal para o custeio de futuras obras sociais, prorrogando-se o prazo por mais 30 (trinta) dias para adequação;

III- em caso de persistência de não adequação nos prazos acima referidos, será aplicada multa de até 1000 (mil) UFM’s, interdição do local e suspensão do respectivo alvará de funcionamento.

Art. 3º - Esta Lei será fiscalizada pela Secretaria Municipal competente.

Art. 4º - Fica o Poder Público Municipal autorizado a fazer ampla divulgação nos estabelecimentos referidos no art. 1º desta Lei, para que eles venham a se adequar, possibilitando às pessoas portadoras de necessidades especiais e de mobilidade reduzida um maior acesso e participação nas atividades culturais municipais.

Art. 5º - As despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário, e constantes na Lei orçamentária Anual-2010, sob  código 06183 da Secretaria Municipal de Governo, programa 8047.6026-ampliar fiscalização municipal.

Art. 6º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

Como se pode observar referida lei obriga a existência de espaço para acomodação de cadeiras de rodas e assentos reservados para pessoas portadoras de necessidades especiais e mobilidade reduzida, nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares localizados no Município de Suzano.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25- Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

De fato, o regime jurídico das políticas públicas é regulado por lei, cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executá-las.

O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição Federal, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se, no caso sob exame, que a Câmara de Vereadores de Suzano aprovou a Lei n.º 4.493/2011, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, não apenas autorizando o Executivo a certas condutas, mas impondo-lhe obrigações, com nítida vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

Numa análise mais acurada da questão tratada, constata-se que os direitos cuja proteção se cogitou na norma hostilizada são mais amplamente garantidos pela Constituição Federal e sem imposição dos requisitos previstos lei ora impugnada.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Por último, as obrigações impostas ao Poder Executivo pela Lei n° 4.493/2011, claramente resultarão em despesas para o erário do Município de Suzano, ofendendo o postulado no art. 25 da Constituição Bandeirante.

 Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis, criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Deve-se destacar, diante da legislação versada, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, inciso XIV).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

Já alerta Sérgio Resende de Barros que a denominada lei autorizativa “constitui um expediente usado por parlamentares para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’ passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado” (“Leis Autorizativas”, Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino, n° 29, p. 259-267, ago./nov. 2000).

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

E sobre o tema em foco destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ:

 “Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

 Restando caracterizada a violação de preceitos contidos na Constituição do Estado de São Paulo, a saber, dos arts. 5°, 25, 47, incs. II e XIV e 144, merece a Lei n° 4.493/2011, do Município de Suzano, ser extirpada do mundo jurídico.

Ademais, a matéria sobre a qual a Câmara legislou vem disciplinada na Lei Federal n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, e no Decreto n. 5.296, de 02 de dezembro de 2004, o que torna relativamente fácil a tarefa de identificar que o Município de Suzano legislou sobre matéria de competência concorrente da União e dos Estados (CF, art. 24, XIV).

Assim, se os Municípios dispusessem de competência concorrente com a União para legislar sobre regras de repartição de competências, o que se admite somente para argumentar, a eventual omissão desta resultaria na competência legislativa plena daqueles. Mas, na espécie, como se trata de competência concorrente da União e dos Estados, é defeso aos Municípios legislar sobre esse tema e a consequência, em caso de inobservância desse preceito, é a invalidade da norma.

Portanto, ainda que o conteúdo da Lei Municipal n. 4.493/2011 tenha por escopo a Lei Federal n. 10.098/2000 e o Decreto n.º 5.296/2004, deve, também, por esta razão ser declarada inconstitucional sob pena de gerar grave insegurança jurídica, visto que haverá sempre a possibilidade de questionamento judicial da regularidade desse procedimento.

Na verdade, sob a perspectiva eminentemente jurídica, é inviável a coexistência da legislação impugnada com a Lei Federal n. 10.098/2000 e com o Decreto nº 5.296/2004, pois as regras de repartição de competências da Constituição Federal sinalizam que à União e aos Estados compete de modo concorrente a função de legislar sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência (art. 24, XIV, CE), de tal modo que qualquer norma editada por municípios, relativamente a essa matéria, não tem como subsistir na ordem jurídico-constitucional vigente.

Por outro lado, é necessário definir se a norma remissiva do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, que manda os municípios atenderem aos princípios estabelecidos da Constituição Federal, pode ser utilizada isoladamente como parâmetro de controle de constitucionalidade na presente ação direta.

Essa questão foi enfrentada pelo STF, no julgamento da Rcl. n.º 3906/SP (rel. Min. GILMAR MENDES), no qual se admitiu adoção de normas remissivas como parâmetros válidos de controle de constitucionalidade nas ações processadas perante os Tribunais Estaduais, “verbi”’:

“Sobre a problemática da aptidão das normas remissivas para compor o parâmetro de controle em abstrato de constitucionalidade no âmbito do Estado-membro, cito novamente as lições de Leo Leoncy (Controle de constitucionalidade estadual. São Paulo: Saraiva, 2006, no prelo): ‘A elevação da Constituição do Estado-membro a parâmetro único e exclusivo do controle abstrato de normas estaduais torna oportuna a discussão acerca das normas constitucionais estaduais que podem ser consideradas idôneas para efeito de se realizar esse controle. O que se quer saber é se tal controle pode ser realizado em face de todas as normas da Constituição Estadual ou se, ao contrário, haveria algum tipo de norma que, em razão da sua natureza, não pudesse servir de parâmetro normativo idôneo. Nesse sentido, assume especial relevo a discussão acerca das chamadas normas jurídicas remissivas presentes nas diversas Constituições Estaduais. Em sua grande maioria, as normas jurídicas trazem elas próprias a regulamentação imediata da matéria a que concernem, merecendo, por isso, a denominação de normas de regulamentação direta ou, em fórmula mais sintética, normas materiais. Por outro lado, em contraposição a estas normas, há outras em que a técnica utilizada para a atribuição de efeitos jurídicos a determinado fato contido na hipótese normativa é indireta’, ‘consistindo numa remissão para outras normas materiais que ao caso se consideram, por esta via, aplicáveis’. Tais normas podem designar-se normas de regulamentação indireta ou normas per relationem, sendo mais apropriado, entretanto, denominá-las normas remissivas. Essa classificação das normas jurídicas em geral aplica-se também às normas constitucionais em particular, sendo possível, portanto, proceder à distinção entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais remissivas, ‘consoante encerram em si a regulamentação ou a devolvem para a regulamentação constante de outras normas’. Como não poderia deixar de ser, fenômeno semelhante ocorre com as normas contidas nas diversas Constituições Estaduais. É comum o poder constituinte decorrente fazer constar das Constituições Estaduais um significativo número de proposições jurídicas remissivas à Constituição Federal. O uso de tais fórmulas acaba por revelar muitas vezes a intenção daquele constituinte de transpor para o plano constitucional estadual a mesma disciplina normativa existente para uma determinada matéria no plano constitucional federal. Diante dessa constatação, coloca-se o problema de saber se tais proposições jurídicas remissivas constantes das Constituições Estaduais configuram parâmetro normativo idôneo para o efeito de se proceder, em face delas, ao controle da legitimidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais perante os Tribunais de Justiça dos Estados. Uma das dificuldades encontradas radica no fato de que, para se revelar o conteúdo normativo da norma estadual de remissão, em face da qual se impugna a lei ou ato normativo local, seria necessário valer-se antes do(s) dispositivo(s) da Constituição Federal mencionado(s) ou remetido(s). Nesses termos, a norma constitucional estadual não possuiria conteúdo próprio, por não revelar sentido normativo autônomo. (...) Nesta hipótese, a questão que se coloca pode ser assim formulada: seria possível impugnar por meio de ação direta, perante Tribunal de Justiça, lei ou ato normativo local por violação ao princípio da isonomia previsto na Constituição Federal e ao qual, segundo aquela proposição remissiva genérica, a Constituição do Estado-membro faz referência? O Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão no julgamento do RE n° 213.120/BA, Re. Min. Maurício Corrêa, DJ 2.6.2000, diante de norma remissiva constante da Constituição do Estado da Bahia (art. 149), que possui o seguinte teor: ‘O sistema tributário estadual obedecerá ao disposto na Constituição Federal, em leis complementares federais, em resoluções do Senado Federal, nesta Constituição e em leis ordinárias’. Na ocasião, o Tribunal entendeu que tal norma não poderia figurar como parâmetro de controle de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. O julgado está assim ementado: ‘EMENTA: CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL. PRESSUPOSTOS. HIPÓTESE DE NORMAS QUE FAZEM MERA REMISSÃO FORMAL AOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A simples referência aos princípios estabelecidos na Constituição Federal não autoriza o exercício do controle abstrato da constitucionalidade de lei municipal por este Tribunal. 2. O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante esta Corte só é permitido se a causa de pedir consubstanciar norma da Constituição Estadual que reproduza princípios ou dispositivos da Carta da República. 3. A hipótese não se identifica com a jurisprudência desta Corte que admite o controle abstrato de constitucionalidade de ato normativo municipal quando a Constituição Estadual reproduz literalmente os preceitos da Carta Federal. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido para declarar o autor carecedor do direito de ação.’ Porém, esse posicionamento foi superado no julgamento da RCL n° 733/BA, na qual o Tribunal, por unanimidade de votos, seguiu o voto do Ministro Ilmar Galvão, relator, no sentido de que as normas pertencentes à Constituição estadual, que remetem à disciplina de determinada matéria na Constituição Federal, podem servir de parâmetro de controle abstrato de constitucionalidade no âmbito estadual. No caso, tratava-se do art. 5º, caput, da Constituição do Estado do Piauí, que possui o seguinte teor: ‘O Estado assegura, no seu território e nos limites de sua competência, a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal confere aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país’. Sobre o acerto desse novo posicionamento do Tribunal, Leo Leoncy tece os seguintes comentários, em análise crítica da decisão proferida anteriormente no RE n° 213.120: Em face de tal decisão (proferida no RE n° 213.120), convém perguntar se o uso de normas remissivas pelo constituinte estadual, para disciplinar determinada matéria que em outras normas elaboradas pelo constituinte federal já teve sua disciplina amplamente formulada, inviabiliza a defesa processual daquelas, em controle abstrato, perante o Tribunal de Justiça. Para resolver essa questão, é preciso desenvolver um pouco mais a noção de norma jurídica remissiva, para, ao final, tecerem-se algumas conclusões a respeito. Para isso, far-se-á uso dos conhecimentos disponíveis em teoria geral do direito. A remissão por meio de proposições jurídicas é um recurso técnico-legislativo de que o legislador se vale para evitar repetições incômodas. Proposições jurídicas dessa natureza ‘remetem, tendo em vista um elemento da previsão normativa ou a consequência jurídica, para outra proposição jurídica’. Daí porque tais proposições serem consideradas como proposições jurídicas incompletas. Consideradas isoladamente, tais proposições carecem de maior significado, apenas o adquirindo em união com outras proposições jurídicas. Daí se afirmar que as proposições jurídicas incompletas são apenas partes de outras proposições normativas. Para Larenz, ‘todas as proposições deste género são frases gramaticalmente completas, mas são, enquanto proposições jurídicas, incompletas’. Não obstante, tais normas são válidas, são tidas como direito vigente, recebendo sua força constitutiva, fundamentadora de consequências jurídicas, quando em conexão com outras proposições jurídico-normativas. Esse caráter incompleto das proposições jurídicas remissivas remete ainda a uma outra classificação doutrinária. Nesse sentido, outra dicotomia que merece atenção é a relativa às normas autônomas e às normas não autônomas ou dependentes, ‘consoante valem por si, contêm todos os elementos de uma norma jurídica, ou somente valem integradas ou conjugadas com outras’. Desse modo, normas autônomas ‘são as que têm por si um sentido [normativo] completo’ e não autônomas ou dependentes as que ‘exigem a combinação com outras’. Uma proposição autônoma ‘basta-se a si própria, tem nos seus termos todos os elementos necessários para a definição do seu alcance normativo’. Por outro lado, uma proposição não autônoma ‘não contém todos esses elementos’, devendo ser conexionada com outra proposição jurídica ‘para que o comando que nela se contém fique completo’. Imbricando uma e outra classificação, é possível afirmar que apenas as normas materiais seriam normas autônomas, porquanto as normas remissivas, por carecerem dos elementos de uma outra norma jurídica com a qual ganhariam sentido se e quando conjugadas, constituem-se, em última análise, em normas não autônomas ou dependentes. A norma constitucional estadual de remissão, na condição de norma dependente, toma de empréstimo, portanto, um determinado elemento da norma constitucional federal remetida, não se fazendo completa senão em combinação com este componente normativo externo ao texto da Constituição Estadual. Essa circunstância, todavia, não retira a força normativa das normas constitucionais estaduais de remissão, que, uma vez conjugadas com as normas às quais se referem, gozam de todos os atributos de uma norma jurídica. É o que se extrai da seguinte passagem de Karl Larenz: ‘O serem proposições jurídicas, se bem que incompletas, significa que comungam do sentido de validade da lei, que não são proposições enunciativas, mas partes de ordenações de vigência. Todavia, a sua força constitutiva, fundamentadora de consequências jurídicas, recebem-na só em conexão com outras proposições jurídicas’. Com isso, se uma norma estadual ou municipal viola ou não uma proposição constitucional estadual remissiva, é circunstância que apenas se saberá após a combinação entre norma remissiva e norma remetida, que é o que vai determinar o alcance normativo do parâmetro de controle a ser adotado. Entretanto, uma vez determinado esse alcance, a anulação da norma estadual ou municipal por violação a tal parâmetro nada mais é do que uma consequência da supremacia da Constituição Estadual no âmbito do Estado-membro. Em outras palavras, as consequências jurídicas decorrentes de eventual violação à proposição remissiva constante da Constituição Estadual derivam da própria posição hierárquico-normativa superior desta no âmbito do ordenamento jurídico do Estado-membro, e não da norma da Constituição Federal a que se faz referência. Assim, se as proposições remissivas constantes das diversas Constituições Estaduais, apesar de seu caráter dependente e incompleto, mantêm sua condição de proposições jurídicas, não haveria razão para se lhes negar a condição de parâmetro normativo idôneo para se proceder, em face delas, ao controle abstrato de normas perante os Tribunais de Justiça. Essa parece ser a tese subjacente ao entendimento adotado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento da RCL 733, por unanimidade de votos, seguiu a orientação do Min. Ilmar Galvão, no sentido de que as normas constitucionais estaduais remissivas à disciplina de determinada matéria prevista na Constituição Federal constituem parâmetro idôneo de controle no âmbito local (...)’. Portanto, tal qual o entendimento adotado na RCL n° 383 para as hipóteses de normas constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos da Constituição Federal, também as normas constitucionais estaduais de caráter remissivo podem compor o parâmetro de controle das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. Dessa forma, também aqui não é possível vislumbrar qualquer usurpação da competência do STF. (g.n.)
            A análise desse excerto revela que, no âmbito do Colendo Supremo Tribunal Federal, encontra-se definitivamente superada a jurisprudência que inadmitia o uso de norma remissiva como parâmetro idôneo do controle normativo abstrato que se desenvolve no plano estadual, revelando-se, assim, viável o processamento da presente ação direta de inconstitucionalidade na qual se aponta exclusivamente a violação do art. 144 da Carta Paulista.
            Nessa ordem de ideias, cumpre acrescentar que o referido art. 144 manda os municípios atenderem os princípios estabelecidos na Constituição Federal. Acerca de tais princípios, RAUL MACHADO HORTA (Cf. “Direito Constitucional”, Del Rey, 5.ª edição, 2010, p. 42) registrou que:
 
outro grupo de normas centrais é o constituído pelos princípios estabelecidos na Constituição Federal, que, a partir da Constituição Federal de 1946 (art. 18, passaram a limitar a autonomia constitucional do Estado-Membro, quer no exercício excepcional do poder constituinte auto-organizador, quer no exercício constante dos poderes reservados, obedecendo à regra de que aos Estados se reservam todos os poderes que implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados pela Constituição Federal.
           A identificação dos princípios estabelecidos reclama a interpretação do texto da Constituição Federal o seu conjunto, para reunir as regras dispersas que definam a origem, a causa, o começo, o germe, o elemento predominante da Constituição Federal. Os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências (g.n.), o sistema tributário, a organização dos Poderes, os direitos políticos, nacionalidade, os direitos e as garantias individuais, os direitos sociais, ordem econômica, a educação, a família e a cultura, afinal, na matéria dispersa no texto constitucional federal. A Constituição expansiva amplia e dilata o campo dessa pesquisa dos princípios estabelecidos, enquanto a Constituição não expansiva e breve contrai e reduz o campo dos princípios estabelecidos. (g.n.)

         Como os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências, a par de outras, a violação do art. 144 da Carta Política Estadual parece bem caracterizada, tendo em vista que a Câmara de Vereadores de Suzano usurpou competência da União e dos Estados ao legislar sobre as condições de acessibilidade para pessoas portadoras de necessidades especiais ou com mobilidade reduzida nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares no Município de Suzano.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 4.493, de 27 de junho de 2011, do Município de Suzano, que “dispõe sobre a acessibilidade de pessoas portadora de necessidades especiais ou mobilidade reduzida nos cinemas, teatros, ginásios esportivos, estádios, circos, casas de espetáculos e demais locais públicos similares, e dá outras providências”

São Paulo, 19 de abril de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

/vlcb