Parecer
Autos n. 0011354-42.2011.8.26.0000
Requerente: Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo - SETPESP
Objeto: Lei Municipal nº 3.284, de 6 de dezembro de 2000, do Município de Tatuí
Ementa: Isenção de tarifa no transporte coletivo. Lei n. 3.284, de 6 de dezembro de 2000, do Município de Tatuí, de iniciativa parlamentar, que garante aos portadores de deficiência física, mental, visual, auditiva ou múltipla, carentes sócio-economicamente, a gratuidade no transporte coletivo urbano, no ônibus de linha regular. Ausência de reserva do Chefe do Poder Executivo. Parecer pela improcedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo - SETPESP, tendo por objeto a Lei Municipal nº 3.284, de 6 de dezembro de 2000, do Município de Tatuí, que garante aos portadores de deficiência, física, mental, visual, auditiva ou múltipla, carentes sócio-economicamente, a gratuidade, no ônibus de linha regular.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, por isso, encontra-se eivado pelo vício de iniciativa, além de não apontar a fonte de custeio, o que também lhe acarretaria afronta à Constituição Estadual.
A liminar foi indeferida (fls. 66/67), o que ensejou a interposição de agravo regimental julgado improcedente pelo Colendo Órgão Especial (fls. 112/113).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 78/80).
O Prefeito Municipal prestou informações a fls. 82/99, pleiteando a improcedência da ação.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
A
preliminar é de ser afastada.
É
evidente a legitimidade do sindicato para a propositura de ação direta de
inconstitucionalidade, face à expressa previsão legal.
No
mérito, a ação deve ser julgada improcedente,
pois a matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa
reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a
6, da Constituição Paulista, inexistindo, por esse aspecto, qualquer
inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao
projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe.
De outro lado, não há, também, violação
ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. A
Constituição Federal atribuiu competência aos Municípios para legislar sobre
assuntos de interesse local, bem como para organizar e prestar, diretamente ou
sob o regime de concessão ou permissão, os serviços de interesse local,
incluído o transporte coletivo (art.30, II e V da CF). Assim, legislar a
respeito do tema não significa invadir a seara da administração local.
A
propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do
Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos
públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e
extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores
públicos (cf. art.24, §2º, n.
De outro lado, a Constituição do Estado
de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior
da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47,
incisos II e XIV).
O princípio da independência e harmonia
entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional
brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo
em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na
proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado,
decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e
Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma
relevância política.
Assim como o Executivo não deve sofrer
indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento,
direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo
não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise,
nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de
elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.
Entendimento diverso significa admitir,
como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma
balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do
Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado
por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.
Não parece ter sido esta a opção do
Constituinte.
Note-se, de início, que a essência da
separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado
Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás,
procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao
Executivo, ou a redução das despesas públicas” (Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 147).
Como anota José Afonso da Silva, nos
casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são
esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ª ed., São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 179).
Deve-se notar, entretanto, que a regra
em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do
art. 61, caput, da CF, ao passo que
as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais.
Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente,
sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.
Lembrando o brocardo latino segundo o
qual “exceptiones sunt strictissimae
interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são
estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas
jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e
tempos que designam expressamente” (Hermenêutica
e aplicação do direito, 18ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p. 227).
O Pretório Excelso já assentou que as
hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa
legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional,
na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma
restritiva. Confira-se:
"O
respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui
pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das
leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação
concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em
conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu
caráter excepcional — de expressa
previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo
taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de
privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O
desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante
da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de
inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria
integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida,
juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo
(...).” (ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento
em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).
"A
disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz
essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele
somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa,
inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A
teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa
vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a
qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa
— se houver, no texto da própria
Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência
desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo
vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do
Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa."
(MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06,
g.n.).
Note-se que, nos precisos termos da
Constituição Estadual (art. 120), cabe exclusivamente ao Poder Executivo a
fixação de tarifas dos serviços públicos. Entretanto, essa exclusividade não se
estende à prerrogativa de conceder isenções quanto ao pagamento de tarifas, o
que é próprio de lei - cuja iniciativa é geral ou concorrente - a ser editada
pelo ente público responsável pela prestação do serviço (Cf. Hely Lopes
Meirelles, Direito Municipal Brasileiro,
15ª ed., Malheiros, São Paulo, 2006, p. 164).
Também não se caracteriza, na hipótese,
prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o
reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se
que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua
configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade, e abstração.
Também não é possível acolher o pleito
com amparo no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.
Com
a devida vênia, duvidosa a constitucionalidade do dispositivo, ao prever que “Nenhum
projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será
sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios
para atender aos novos encargos”, quando utilizado como entrave ao
regular desenvolvimento do processo legislativo.
Ademais, afirmar que a lei gerará aumento
de despesas sem que haja recursos disponíveis é pautar o exame da
constitucionalidade da norma em aspecto factual (existência ou não dos
recursos), cuja análise extrapola o limite do controle abstrato de normas.
A
adequada compreensão do art. 25 da Constituição do Estado nos leva à conclusão
de que o Poder Executivo está impedido de sancionar qualquer projeto de lei que
implique a criação ou o aumento de despesa pública, quando dele não constar a
indicação dos recursos disponíveis, próprios para o atendimento dos novos
encargos. Mas isso não significa que o Legislativo não possa ter iniciativa na
matéria. Quem tem o poder de veto ou sanção é o Executivo, e a regra se dirige
exclusivamente a ele.
Na
Constituição Federal, porém, não existe nenhuma regra com idêntico conteúdo,
que impeça o Chefe do Poder Executivo de exercer a prerrogativa de sancionar os
projetos de lei aprovados pelo Parlamento.
Assim, o art. 25 da Constituição do
Estado de São Paulo é inconstitucional, na medida em que viola o modelo adotado
pela Constituição Federal para o processo de elaboração das leis.
Como
é sabido, o modelo de processo legislativo adotado em nosso ordenamento está
delineado no texto da Constituição Federal.
Embora pondere com relação ao acerto da
tese, sustenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, em que pese a autonomia
para organização reservada aos Estados e Municípios, “O
STF tem decidido no sentido da simetria entre o processo legislativo da União e
o dos Estados e Municípios. É o que resulta da jurisprudência iniciada na Ação
Direta de Inconstitucionalidade .216/PB, relatada pelo Min. Celso de Mello (RTJ
146:388)” (Do processo
legislativo, cit., p.253).
Nesse sentido já se posicionou o Pretório
Excelso, pacificando a obrigatoriedade de simetria entre o processo legislativo
dos Estados e dos Municípios, com relação ao Federal, em que pese a respectiva
autonomia dos entes federativos:
"Processo de
reforma da Constituição estadual — Necessária observância dos requisitos
estabelecidos na Constituição Federal (art. 60, §§ 1º a 5º) — Impossibilidade
constitucional de o Estado-Membro, em divergência com o modelo inscrito na Lei
Fundamental da República, condicionar a reforma da Constituição estadual à
aprovação da respectiva proposta por 4/5 (quatro quintos) da totalidade dos
membros integrantes da Assembléia Legislativa — Exigência que virtualmente
esteriliza o exercício da função reformadora pelo Poder Legislativo local — A
questão da autonomia dos Estados-Membros (CF, art. 25) — Subordinação jurídica do poder constituinte decorrente às limitações
que o órgão investido de funções constituintes primárias ou originárias
estabeleceu no texto da Constituição da República: (...)." (ADI 486, Rel. Min. Celso de
Mello, julgamento em 3-4-97, DJ de 10-11-06, g.n.).
"O poder constituinte outorgado aos Estados-Membros sofre as limitações jurídicas impostas pela Constituição da República. Os Estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem (CF, art. 25), submetendo-se, no entanto, quanto ao exercício dessa prerrogativa institucional (essencialmente limitada em sua extensão), aos condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal, pois é nessa que reside o núcleo de emanação (e de restrição) que informa e dá substância ao poder constituinte decorrente que a Lei Fundamental da República confere a essas unidades regionais da Federação.” (ADI 507, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-2-96, DJ de 8-8-03).
Registre-se ainda que, à parte de prever
regra não contida no processo legislativo federal, o art. 25 da Constituição do
Estado de São Paulo acaba por criar óbice quase que intransponível ao exercício
da iniciativa legislativa por parte de parlamentares (recordemos que a
iniciativa em matéria orçamentária é reservada ao Poder Executivo cf. art. 174
da Constituição do Estado; e art. 165 da Constituição Federal), interferindo,
ademais, na prerrogativa do Executivo de sancionar ou vetar os projetos de lei.
De outro lado, é de se destacar a
relevância social da legislação impugnada.
A
Constituição Federal, no seu art. 203, inc.IV, prevê que:
“A assistência social será
prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade
social, e tem por objetivos:
................................................................................................
IV- a habilitação e
reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária.”
Isso nos permite afirmar que a lei
impugnada está em conformidade com a ordem jurídica vigente, sendo
absolutamente razoável o benefício por ela concedido.
Tratar
diferentemente não significa, por si, quebra do princípio da isonomia material.
Deste modo, a relevância social do
diploma deve também ser levada em consideração no exame de sua
constitucionalidade, que, ao contrário do alegado pelo autor, deve ser
confirmada.
Diante do exposto, aguarda-se a improcedência da presente ação direta, reconhecendo-se a constitucionalidade da lei impugnada.
São Paulo, 10 de outubro de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb