Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0011792-34.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto: Lei nº 4.474, de 16 de maio 2011, do Município de Suzano

 

 

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Obrigatoriedade de equipamento de segurança para resgate de pessoas com deficiência motora ou com mobilidade reduzida, nas edificações públicas, privadas abertas ao público e privadas, de uso familiar, com mais de um pavimento.  2) Ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista).  3) Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receitas (art. 25 da Constituição Paulista).  4) Inconstitucionalidade parcial reconhecida, no que tange às edificações públicas.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por objeto a Lei Municipal Lei nº 4.474, de 16 de maio 2011, daquele Município, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de equipamento de segurança para resgate de pessoas com deficiência motora ou mobilidade reduzida, nas edificações com mais de um pavimento no município de Suzano e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 22/23).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 38/39, atendo-se, tão somente, quanto ao processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 35/36).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com a nossa sistemática constitucional, no que tange à imposição de obrigação à Administração Pública.

Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:

“Art. 1º. É obrigatória a existência de equipamento de segurança do tipo cadeira resgate, para facilitar o salvamento de pessoas com deficiência motora ou com mobilidade reduzida, nas edificações públicas, privadas abertas ao público e privadas, de uso familiar, com mais de um pavimento.

§ 1º. Cadeira resgate é a cadeira equipada com todos os aparatos de segurança; cinto protetor, tábua inferior e rodas que permitem o seu deslocamento sobre escadas, mas com a necessidade de auxílio de terceiros para sua movimentação.

§ 2º. Edificações de uso público são aquelas destinadas às entidades da administração pública direta e indireta ou às empresas prestadoras de serviços públicos.

(...)”

        A lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo a obrigação de equipar seus prédios com cadeira resgate.

Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47 II e XIV da Constituição Paulista.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe, primordialmente, a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação dos poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

            E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, porquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010).

            Não bastasse o acima exposto, esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder Público, sem a indicação das respectivas fontes de receita, como no caso em tela, em violação ao disposto no art. 25 da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.

         Ainda, a impugnada norma criou obrigação ao Executivo para que equipe prédios com a cadeira resgate que se encontram sob sua administração, violando, mais uma vez, o princípio da separação dos poderes.

         No entanto, na parte em que a norma se dirige aos particulares, de forma geral e abstrata, deve subsistir uma vez não maculada com as mesmas irregularidades acima apontadas.

         Desta forma, a ação deve ser julgada parcialmente procedente somente para que seja eliminada a obrigação dirigida à Administração Pública.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da expressão “edificações públicas”, contida no art. 1º, da Lei nº 4.474, de 16 de maio 2011, do Município de Suzano.

São Paulo, 2 de abril de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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