Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0011794-04.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: inconstitucionalidade da Lei nº 4.483, de 02 de junho de 2011, do Município de Suzano

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 4.483/11, do Município de Suzano, que “Cria a campanha de cuidados e prevenção contra doenças causadas por enchentes e dá outras providências”. Projeto de iniciativa parlamentar. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui campanha e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º; 25, caput; 47, II e XIV; 144 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Suzano impugnando a Lei nº 4.483, de 02 de junho de 2011 que “Cria a campanha de cuidados e prevenção contra doenças causadas por enchentes e dá outras providências”, sob a alegação de violação aos arts. 5º, 25, 47, II e 144 da Constituição Estadual (fls. 02/10).

Não foi concedida liminar (fls. 22/23), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 84/86), tendo a Câmara Municipal apresentado informações (fls. 32/82).

É o relatório.

A ação é procedente.

A lei impugnada, concebida pelo Vereador Rafael Francini Garcia (fls. 20), cria a “Campanha de cuidados e prevenção contra doenças causadas por enchentes no âmbito do município de Suzano”, disciplinando que anualmente, nos meses de verão, os órgãos competentes veicularão, através de mídias impressas e eletrônicas, ampla campanha publicitária sobre o assunto, remetendo ao Poder Executivo a regulamentação da lei.

Destarte, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram a Câmara Municipal, tem-se que a lei impugnada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Art. 176 - São vedados:
I - o início de programas, projetos e atividades não incluídos na lei orçamentária anual;”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de campanhas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em questão, a Câmara institui uma campanha e cria obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local em prevenir as doenças causadas pelas enchentes, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma diz respeito a atos inerentes à função executiva, como afirmado na inicial.

Com efeito, a criação de campanhas, programas e a forma de prestação de serviços públicos são matérias de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a este Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência da Administração.

Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para criação de políticas públicas e funcionamento de serviços municipais é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “e”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e da oportunidade de criar a campanha em questão e fixar as regras para sua operacionalização. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada ao Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal de Suzano, de iniciativa parlamentar, autorizando o Poder Executivo Municipal a criar salas de leitura nas escolas da rede municipal. Afronta ao princípio da separação dos poderes. Invasão de competência exclusiva do Executivo. Violação aos artigos 5o, 25, 47 II e XIV e 144 da Constituição Estadual. Ação procedente para declarar a inconstitucionalidade da lei n°4.405/2010 do Município de Suzano” (Adin n. 0057183-46.2011.8.26.0000, Rel. Dês. Ruy Coppola, de 14/09/2011)

Não se concebe, todavia, violação ao princípio da legalidade por invasão da competência normativa de outra esfera, mas há ofensa à regra que condiciona o estabelecimento de nova despesa pública à cobertura financeiro-orçamentária (art. 25 e 176, I, ambos da Constituição Estadual).

 

Sob esse aspecto, é de se notar que a instituição da campanha gera despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se incompatibiliza com referidas regras constitucionais.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.483/11, do Município de Suzano, por violação aos arts. 5º, 25, caput, 47, II, XIV, 144 e 176, I da Constituição do Estado de São Paulo.

        São Paulo, 24 de abril de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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