Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 0016695-49.2011.8.26.0000

Autor: Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Tatuí

Objeto de impugnação: art. 5.º, inciso III, do Anexo II, da Lei Municipal n.º 3.654/2005; art. 1.º da Lei n.º 3.825/2006; art. 1.º da Lei n.º 3.964/2007; art. 1.º da Lei n.º 4.080/2008; art. 9.º da Lei n.º 4.149/2008; art. 1.º da Lei n.º 4.218/2009; art. 1.º da Lei n.º 4.219/2009; art. 1.º da Lei n.º 4.305/2009; art. 1.º da Lei n.º 4.322/2010; art. 163, § 3.º, da Lei Complementar n.º 6/2009, do Município de Tatuí.

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Criação arbitrária de cargos de confiança por leis editadas no Município de Tatuí (Leis 4.219/2009; 4.149/2008; 4.080/2008 e 3.964/2007). Cargos aos quais correspondem atribuições que prescindem do estabelecimento de vínculo de especial confiança com a autoridade nomeante. Inconstitucionalidade parcial. Caracterizada a violação do art. 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo. Ação procedente, em parte.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Cuida-se de ação na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade parcial das leis em epígrafe, especificamente no ponto em que estas trataram da criação de cargos em comissão que, porém, prescindem do requisito de fidúcia. Os cargos impugnados na inicial são os seguintes:

Segundo o Sindicato-Autor da ação, a criação de cargos que, na prática, não correspondem a atribuições de direção, chefia e assessoramento, mas sim a funções técnicas ou profissionais, contraria o disposto no art. 115, incisos I, II e V da Constituição do Estado de São Paulo. Bem por isso, requer que sejam declarados inconstitucionais os seguintes cargos em comissão: “Diretor de Escola, Coordenador Pedagógico, Supervisor de Ensino, Assessor Técnico, Chefe Administrativo, Diretor Técnico de Departamento, Agente de Desenvolvimento, Músicos Regentes, Assessoria, Assessoria Técnica, Diretor de Departamento, Diretor Parque Ecológico, Chefe Administrativo, Diretor de Departamento, Diretor Escola – EMEF, Assistente Técnico de Direção, Diretor Presidente, Diretor de Benefícios e Diretor Administrativo e Financeiro”, previstos nas disposições legais em epígrafe.

Houve concessão de liminar (fls. 358/359) seguida da interposição tempestiva de agravo regimental e da parcial reconsideração da decisão recorrida (fls. 411/412).

Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada, ausente, porém, neste caso em que as leis versam sobre matéria exclusivamente local.

Nas suas informações, a Câmara Municipal de Tatuí limitou-se ao estabelecimento da cronologia de votação dos projetos de lei naquela Casa.

Oportunamente, Sindicato-Autor peticionou nos autos para solicitar a desistência da presente ação.

Em resumo, é o que consta nos autos.

Preliminarmente, malgrado o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ser omisso a esse respeito, a desistência da presente ação não é possível.

É que a ação direta de inconstitucionalidade não se trata de processo comum, destinado à tutela de interesses subjetivos, mas sim de processo objetivo voltado exclusivamente à defesa da ordem jurídico-constitucional.

Assim, desde que proposta a ação, o seu Autor não mais poderá dela desistir, pois não está aqui a defender interesse próprio, do qual tenha poder de disposição, justificando o efetivo exercício do controle normativo abstrato – pelo órgão incumbido desse mister – o interesse superior de preservação da harmonia do ordenamento jurídico vigente, que não tolera a existência de lei ou ato normativo desconforme à Constituição.

Nesse mesmo sentido, a doutrina mais abalizada ensina que:

“O Supremo Tribunal Federal chegou a admitir a desistência da ação proposta (Rp. 287, Rel. Min. Nélson Hungria, DJ, 16.abr.1958). O Tribunal afastou-se, porém, desse entendimento inicial e, desde 1970, o seu Regimento Interno já consagrava, expressamente, a inadmissibilidade da desistência da ação (RISTF, art. 169, § 1.º). Da mesma forma determinou a Lei 9.868/99, em seu art. .º 5.º, que não se permita a desistência da ação direta de inconstitucionalidade.

A razão principal que fundamenta o dispositivo ora examinado reside na natureza objetiva do processo do controle de constitucionalidade. ‘A admissibilidade do controle de normas – ensina Söhn – está vinculada, tão-somente, a uma necessidade pública de controle (öffentlichesKontrolbedürfnis)’.

A provocação de um órgão externo é imprescindível, inclusive como garantia contra eventual supremacia da jurisdição constitucional. Não obstante, não se reconhece qualquer poder de disposição aos órgãos legitimados para desencadear o processo e controle abstrato de constitucionalidade(g.n.).” (Cf. “Controle Concentrado de Constitucionalidade – Comentários à Lei n.º 9.868, de 10-11-1999”, Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, Saraiva, São Paulo, 3.ª edição, 2009, pp. 282/283)      

Logo, o pedido de desistência da ação deve ser indeferido de plano.

No mérito, a ação comporta parcial procedência.

Com efeito, a criação de cargos em comissão que não correspondam a atribuições de “direção, chefia e assessoramento” tipifica autêntica burla ao postulado constitucional do concurso público.

Assim já decidiu o STF, verbis:

...a criação de cargo em comissão em moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento da exigência constitucional de concurso.” (STF, Rp. 1.282-4, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, j. em 12.dez.1985).”

“A exigência constitucional do concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os caracteriza.” (ADIn 1.141-3-GO, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, Plenário, 10.out.1994, DJU 04.nov.1994, pg. 29.829).

        

No seu art. 37, inciso II, a Constituição em vigor prevê que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

Como se observa, a Constituição prevê como condição para o ingresso no serviço público a aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos; por sua vez, as nomeações para cargo em comissão, de livre nomeação exoneração, constituem exceção a essa regra, assim como as contratações por prazo determinado para o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público.

Por se tratar de exceção à regra geral do concurso público, e consoante lição básica de hermenêutica, a norma constitucional que contempla a contratação de servidores para cargos de confiança só admite interpretação restritiva e, na criação desses cargos, o legislador deve observar fielmente os limites traçados na Constituição, cujo art. 37, inciso V, reza o seguinte: “as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.

Na presente ação, são impugnados vários cargos cuja nomenclatura, prima facie, sugere tratar-se de cargos de ‘direção, chefia e assessoramento’.    

Ocorre que a simples nomenclatura, na maioria dos casos, não serve de critério confiável para estabelecer se realmente um cargo é de confiança ou não, havendo necessidade de proceder-se ao exame detalhado das atribuições inerentes aos cargos impugnados para definir se está presente o requisito da fidúcia, isto é, o dever especial de lealdade que o servidor nomeado deve manter com a autoridade nomeante.

Pois bem, no caso dos cargos de Diretor Presidente, Diretor de Benefícios e Diretor Administrativo Financeiro, integrantes da Diretoria Executiva da autarquia municipal (TATUIPREV) que administra o Regime Próprio de Previdência Social dos servidores municipais de Tatuí, cujas atribuições básicas e demais requisitos de provimento são definidos nos arts. 162, I a V, a 167, I a XIII, da Lei Complementar n.º 6/2009, penso não haver nenhuma dúvida de que realmente se trata de cargos de confiança.

São na verdade cargos de administração superior, inclusive o Diretor Presidente possui status de secretario municipal, outorgado expressamente por lei (art. 163, § 1.º), e é remunerado por subsídio, não se verificando, data venia, com relação a tais cargos, a ocorrência de abuso na sua criação, nem a inconstitucionalidade propalada na inicial.         

Quanto aos cargos em comissão previstos no Anexo II da Lei n.º 3.654/2005, Diretor de Escola, Supervisor de Ensino e Coordenador Pedagógico, penso que apenas este último prescinde do requisito da confiança para o seu exercício.

No caso do Diretor de Escola, em que pese ao fato de a jurisprudência desse egrégio Tribunal de Justiça entender que não se trata de cargo de confiança, a orientação adotada pelo STF é diametralmente oposta, admitindo a livre escolha de seus ocupantes pelo chefe do Poder Executivo (Rp 1.473-SC; ADI 51-RJ; ADI 490-AM; ADI 123-SC; ADI 640-MG; RTJ 163/15; ADI 578-RS; ADI 606-1/PR, Rel. Min. Sydney Sanches, Diário da Justiça, Seção I, 28.mai.1999, p. 3).

É bem verdade que nos precedentes trazidos à colação discutiu-se a possibilidade de adoção do sistema eletivo, direto e secreto, na escolha dos dirigentes de estabelecimentos de ensino público, solução que a excelsa Corte descartou, por entender que a investidura nesses cargos deve coadunar-se com o princípio da livre escolha pelo chefe do Poder Executivo.

Assim, quanto a esse cargo, embora reconheça a existência de controvérsia a respeito, peço vênia para acompanhar a orientação do STF – intérprete máximo da vigente Constituição – e propor a improcedência desta ação, solução extensiva ao cargo de Supervisor de Ensino – que hierarquicamente é superior ao próprio cargo de Diretor de Escola –, encarregado de fiscalizar o efetivo cumprimento das diretrizes e metas estabelecidas na área da educação pelo governo municipal.

Diversamente, o cargo de Coordenador Pedagógico, o qual corresponde a atribuições estritamente técnicas ou profissionais, deve ser proclamado inconstitucional, por não se enquadrar na ressalva prevista no art. 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei n.º 3.825, de 20 de abril de 2006, tratou da criação de cargo em comissão (Assessor Técnico) junto à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social – Unidade PROCON – Defesa do Consumidor, cujas atribuições correspondem, basicamente, à prestação de assessoria técnica, ao planejamento, coordenação e orientação das atividades da respectiva área e à realização de estudos, análises e pareceres sobre os assuntos que constituem a área de competência do órgão unidade em que se encontra lotado.

A lei criadora não definiu o requisito de escolaridade inerente a esse cargo, mas é de pressupor-se que a pessoa nomeada para exercê-lo possua formação específica na sua área de atuação, o que, porém, para ser aferido, depende do exame prévio de circunstância fática, inviável nas ações desta natureza.

A omissão da norma quanto ao requisito de escolaridade não conduz automaticamente ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade, revelando apenas sua incompletude (existe sempre a possibilidade de as atribuições estarem previstas noutra norma), o que, porém, não é suficiente para infirmá-la.

Como esse cargo corresponde a atribuições de planejamento, coordenação e orientação das atividades da respectiva área, a par de outras, não é possível ictuoculideclará-lo inconstitucional, mesmo se a realidade for outra, isto é, o servidor nele investido realizar na prática atividades meramente burocráticas, que prescindam do estabelecimento de vínculo de especial confiança, o que pode caracterizar desvio de função, mera irregularidade administrativa, ou desnecessidade da existência desse cargo, apto, portanto, à desnomenclaturação ou mesmo à própria extinção, sem que disso resulte na inconstitucionalidade de sua criação.

Ao contrário, os cargos previstos na Lei n.º 3.964/2007 (Chefe Administrativo e Diretor Técnico de Departamento) devem ser declarados inconstitucionais, pois essa lei é omissa na definição de suas atribuições (e a defesa da Câmara nada diz sobre a existência de outra lei a dispor sobre as atribuições inerentes a tais cargos), e também na dos demais requisitos de provimento, e – como a criação de cargos de confiança constitui exceção à regra moralizadora do concurso público – deveria ela conter todos os elementos essenciais à aferição de sua compatibilidade com a ordem constitucional, mormente as atribuições às quais corresponde.

Esses cargos podem até ser realmente de confiança, mas, como não há elementos suficientes na lei que confirmem tal ilação, é de pressupor-se que a criação de cargos sem a definição dos elementos essenciais a sua perfeita identificação apresente-se como fórmula de burlar a exigência constitucional de concurso público ou de abrandar o rigor dessa regra.

Na espécie, nem é o caso de cogitar-se a observância da regra de hermenêutica segundo a qual o Tribunal deverá abster-se de condenar a norma que apresente algum sentido compatível com a Constituição, visto que de pouco ou nenhuma valia na prática o Tribunal firmar a exegese de que esses cargos devam corresponder efetivamente a funções de confiança.

Idêntica solução comporta os cargos de Agente de Desenvolvimento e Músico Regente (requisito de escolaridade: nível fundamental), criados pela Lei n.º 4.080/2008 (art. 1.º), sem a definição das respectivas atribuições, o que, pelo raciocínio acima empregado, pressupõe burla a regra moralizadora do concurso público, bem evidenciada, aliás, no caso do cargo de Músico Regente para o qual se exige apenas nível fundamental, isto é, prescinde de habilitação técnica específica (formação superior em música).

 Também devem ser declarados inconstitucionais os cargos de Assessoria, Assessoria Técnica e Diretor de Departamento, cujas atribuições são completamente desconhecidas, porquanto a lei criadora é omissa na definição desse aspecto essencial (art. 9.º, §§ 1.º e 2.º, e Anexo II da Lei n.º 4.149/2008), o que, inclusive, desafia a regra constitucional segundo a qual a criação de cargos só pode ser feita por lei, impossibilitando a definição de atribuições (aspecto fundamental na criação de cargos) por ato normativo secundário ou subalterno.

Quanto aos cargos previstos na Lei n.º 4.218/2009 (Diretor do Parque Ecológico, Chefe Administrativo e Diretor Técnico de Departamento), a descrição de suas atribuições (arts. 2.º a 4.º da referida lei) revela tratar-se realmente de cargos de confiança, cuja manutenção é medida de rigor.

Por via de consequência, a Lei n.º 4.322/2009, que alterou a Lei n.º 4.218/2009, nada tem de inconstitucional.

Da Lei n.º 4.219/2009 foram impugnados os cargos de Coordenador Pedagógico e Diretor de EMEF (art. 1.º), mas apenas o primeiro deve ser declarado inconstitucional, pelas razões acima expostas.

Continuando, a Lei n.º 4.305/2009 criou o cargo de Assistente Técnico de Direção (1), cujas atribuições são aquelas descritas nos incisos I a XXIV de seu art. 1.º, e o servidor nele investido é encarregado de auxiliar diretamente a Diretoria da Fundação Educacional “Manoel Guedes”.

É sem dúvida cargo de confiança, pois suas funções são de assessoramento.

Assim, pela minha ótica, apenas os cargos de Coordenador Pedagógico (Lei 4.219/2009), Assessoria, Assessoria Técnica e Diretor de Departamento (Lei n.º 4.149/2008), Agente de Desenvolvimento e Músico Regente (Lei n.º 4.080/2008),Chefe Administrativo e Diretor Técnico de Departamento(Lei n.º 3.964/2007) devem ser declarados incompatíveis com o art. 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo.

Em tais circunstâncias, opino pela parcial procedência da presente ação direta.

                   São Paulo, 1.º de setembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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