Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0018346-19.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Porangaba

Objeto: Lei nº 09, de 02 de junho de 2010, do Município de Porangaba

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei Complementar nº 09, de 02 de junho de 2010, do Município de Porangaba, que “dispõe sobre autorização de redução de Imposto Predial e Territorial Urbano- IPTU aos proprietários de imóveis residenciais e não residenciais que adotem medidas que estimulem a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente em Porangaba”. Lei de iniciativa de Vereador. Caracterizada a ofensa aos princípios da autonomia municipal (financeira), razoabilidade, igualdade, interesse público e capacidade contributiva. A tutela do meio ambiente, a cargo do Poder Público, não autoriza a adoção de medidas arbitrárias ou excessivas, mas sim exige equilíbrio, proporcionalidade entre meios e fins. Essa lei, ademais, beneficia apenas os mais abastados, ante os custos elevados para instalação e manutenção de sistema de captação de água da chuva; sistema de reuso de água; sistema de aquecimento elétrico solar; sistema de aquecimento hidráulico solar; construção com material sustentável; utilização de energia passiva; sistema de utilização de energia eólica, em detrimento da camada mais pobre da população, desconsiderando que os benefícios fiscais devem sempre atender a isonomia tributária.  Ademais, trata-se de ato normativo que invade a esfera de gestão administrativa (art. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Paulista).  Procedência da ação.  

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Porangaba, tendo por objeto a Lei n. 09, de 02 de junho de 2010, daquele Município, que “dispõe sobre a autorização de redução de Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU aos proprietários de imóveis residenciais e não residenciais que adotem medidas que estimulem a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente em Porangaba”.

Sustenta o autor que a lei foi concebida por Vereador e que haveria ofensa ao princípio da tripartição dos poderes e vício de iniciativa.

A Lei implicaria, ainda, renúncia de receita, comprometendo o orçamento municipal.

Foi deferido o pedido de liminar (fls. 149/152).

O Presidente da Câmara Municipal não prestou informações em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 165/166).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada assim se encontra redigida:

"CAPÍTULO I

Disposições Preliminares

Art. 1º - Fica instituído no âmbito do município de Porangaba, o Programa IPTU Verde, cujo objetivo é fomentar medidas que preservem, protejam e recuperem o meio ambiente, ofertando em contrapartida benefício tributário ao contribuinte.

 

CAPÍTULO II

Dos requisitos

Art. 2º - Será concedido benefício tributário, consistente em reduzir o Imposto Predial e Territorial urbano (IPTU), aos proprietários de imóveis residenciais e territoriais não residenciais (terrenos) que adotem medidas que estimulem a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente.

Parágrafo único: As medidas adotadas deverão ser:

I- Imóveis Residenciais (incluindo condomínios horizontais, loteamentos e prédios):

a) Sistema de captação da água da chuva;

b) Sistema de reuso de água;

c) Sistema de aquecimento hidráulico solar;

d) Sistema de aquecimento elétrico solar;

e) Construções co material sustentável;

f) Utilização de energia passiva;

g) Sistema de utilização de energia eólica.

II- Imóveis territoriais não residenciais (terrenos)

a) Manutenção do terreno sem a presença de espécies exóticas e cultivação de espécies arbóreas nativas.

III- Imóveis residenciais (exclusivo para condomínios horizontais, loteamentos ou prédios):

a) Separação de resíduos sólidos.

Art. 3º - Para efeito desta lei, considera-se:

I- Sistema de captação da água da chuva: sistema que capte água da chuva e armazene em reservatórios para utilização do próprio imóvel;

II- Sistema de Reuso de Água: utilização, após o devido tratamento, das águas residuais proveniente do próprio imóvel, para atividades que não exijam que a água seja potável;

III - Sistema de aquecimento hidráulico solar: utilização de sistema de captação de energia solar térmica para aquecimento de água, com a finalidade de reduzir, parcialmente, o consumo de energia elétrica na residência;

IV – Sistema de aquecimento elétrico solar: utilização de captação de energia solar térmica para reduzir parcial ou integralmente o consumo de energia elétrica da residência, integrado com o aquecimento de água.

V- Construções com material sustentável: utilização de materiais que atenuem os impactos ambientais, desde que esta característica sustentável seja comprovada mediante apresentação de selos ou certificados ambientais nacionalmente reconhecidos;

VI- Utilização de energia passiva: edificações que possuam projeto arquitetônico onde sejam especificadas dentro do mesmo, as contribuições efetivas para a economia de energia elétrica, decorrentes do aproveitamento de recursos naturais como luz solar e vento, tendo como consequência a diminuição de aparelhos mecânicos de climatização;

VII- Manutenção do terreno sem a presença de espécies exóticas invasoras que cultivem espécies arbóreas nativas: o proprietário de terreno sem edificações, que proteja seu imóvel de espécies exóticas invasoras, não típicas do local, que passam a tomar conta do terreno, causando grande impacto ambiental, ecológicos, e perda considerável da biodiversidade. Ainda, deve destinar pelo menos 20% de seu espaço ao cultivo de espécies nativas, a fim de aumentar a biodiversidade no período urbano.

Art. 4º - Os padrões técnicos mínimos para cada medida estão previstos no Anexo I, da presente lei.

CAPÍTULO III

Do benefício tributário

Art. 5º - A título de incentivo, será concedido o desconto no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), para as medidas previstas no parágrafo único, do art. 2º, na seguinte proporção:

I- 3% para as medidas descritas nas alíneas c e f, inciso I e alínea a, inciso III;

II- 5% a 9% para a medida descrita na alínea e, inciso I;

III- 7% para as medidas descritas nas alienas a e b, inciso I;

IV- 9% para a medida descrita nas alíneas a, inciso II;

V- 11% para as medidas descritas nas alíneas g e d, inciso I e alínea b, inciso II;

VI- 20% para a medida descrita na alínea d e g, inciso I.

CAPÍTULO IV

Do procedimento para a concessão do benefício

Art. 7º - O interessado em obter o benefício tributário deve protocolar o pedido devidamente justificado para a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, até data de 30 de setembro do ano anterior em que deseja o desconto tributário, expondo a medida que aplicou em sua edificação ou terreno, instruindo o mesmo com documentos comprobatórios.

§1º - Para obter o incentivo fiscal, o contribuinte deverá estar em dia com suas obrigações municipais.

§2º - A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Agricultura e Meio Ambiente designará um responsável para comparecer até o local e analisar se as ações estão em conformidade com a presente Lei, podendo solicitar ao interessado documentos e informações complementares para instruir seu parecer.

§3º - Após a análise, o Secretário Municipal do Desenvolvimento Econômico, Agricultura e Meio Ambiente elaborará um parecer conclusivo acerca da concessão ou não do benefício.

§4º - Sendo o parecer favorável, após a ciência do interessado, o pedido será enviado para a Secretaria de Finanças para as devidas providências no sentido da emissão do IPTU com o referido desconto.

§5º - Entendendo pela não concessão do benefício, a Secretaria arquivará o processo, após ciência do interessado.

Art. 8º - Aquele que obtiver o desconto referido nesta Lei receberá o selo de “amigo do meio ambiente”, para afixar na parede de seu imóvel, sendo que sua regulamentação será feita através de Resolução.

Art. 9º - Só poderão ser beneficiados pela presente Lei, os imóveis residenciais (incluindo condomínios horizontais, loteamentos e prédios) ligados à Rede de Esgoto, desde que disponível, ou que possua sistema ecológico de tratamento de esgoto, como uma fossa ecológica, onde ocorra o processo de biometanação, envolvendo a conversão anaeróbica de biomassa em metano.

Art. 10 – A Secretaria Municipal do Meio Ambiente realizará a fiscalização a fim de verificar se as medidas estão sendo aplicadas corretamente.

Art. 11º - A renovação do benefício tributário deverá ser feita anualmente.

CAPÍTULO V

Da extinção do benefício

Art. 12. O Benefício será extinto quando:

I – O proprietário do imóvel inutilizar a medida que levou à concessão do desconto;

II- O IPTU for pago de forma parcelada e o proprietário deixar de pagar uma parcela;

III- O interessado não fornecer as informações solicitadas pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente.

CAPÍTULO VI

Das disposições finais

Art. 13- A presente Lei atende à compensação exigida pelo dispositivo no art. 14, da Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal).

Art. 14 - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação”.

ANEXO I

Imóveis Residenciais com sistema de aquecimento hidráulico solar: Placas de captação de energia solar que sejam responsáveis pelo aquecimento da água da residência.

3%

Potencialização da utilização de energia passiva: Edificações que possuam projeto arquitetônico onde seja especificado dentro do mesmo, as contribuições efetivas para a economia de energia elétrica, decorrentes da potencialização do uso de recursos naturais, como vento e luz solar, consequentemente reduzindo a utilização de aparelhos mecânicos de climatização.

3%

Construções com material sustentável: Utilização de materiais que atenuem os impactos ambientais, desde que comprovado mediante apresentação de certificado ou selo, em 40% a 60% da área edificada.

5%

Imóveis Residenciais com sistema de captação de água da chuva: O sistema deverá possuir tubos de condução de água, a caixa d’agua deverá ter a capacidade mínima de 2.000 litros, ser tampada, e funcionar integrado ao sistema hidráulico da casa.

7%

Imóveis Residenciais com sistema de reuso de água: O sistema deverá ser nos moldes do art. 6º e 7º da Lei Municipal n. 10.785, de 18 de setembro de 2003 e funcionar integrado ao sistema hidráulico da casa.

7%

Construções com material sustentável: Utilização de materiais que atenuem os impactos ambientais, desde que comprovado mediante apresentação de certificado ou selo, em 61% a 80% da área edificada.

7%

Construções com material sustentável: Utilização de materiais que atenuem os impactos ambientais, desde que comprovado mediante apresentação de certificado ou selo, em 81% a 100% da área edificada.

9%

Sistema de utilização de energia eólica: Deverá captar vento, através de moinhos ou cata-ventos, para a produção de pelo menos 20% da energia elétrica da residência.

11%

Imóveis Residenciais com sistema elétrico solar: Deverá estar integrado ao sistema de energia elétrica da casa e ser responsável pelo menos a 20% do seu consumo total na residência.

11%

 

          A ação é procedente, nem tanto pela argumentação desenvolvida na inicial, à medida que a tese da privatividade de iniciativa das leis tributárias benéficas não encontra ressonância no Supremo Tribunal Federal (ADI 2.724, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 2-4-04, ADI 2.304, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 15-12-2000 e ADI 2.599-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 13-12-2002. ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 27-4-2001 e ADI 2.659, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 6-2-2004; ADI 2.464, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 11-4-2007, Plenário, DJ de 25-5-2007), mas sim pelos fundamentos a seguir expostos.     

         Em verdade, o benefício fiscal previsto na lei em exame atenta contra a razoabilidade (ou proibição de excesso), que, na Constituição do Estado de São Paulo, encontra assento no seu art. 111, servindo tal princípio de limite à atuação do legislador, o qual, para o atingimento de determinados fins, deve empregar os meios estritamente necessários, adequados e proporcionais.

         Segundo Humberto Ávila, ‘o postulado da proporcionalidade exige que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham, para a realização de seus fins, meios adequados, necessários e proporcionais. Um meio é adequado se promove o fim. Um meio é necessário se, dentre todos aqueles meios igualmente adequados para promover o fim, for o menos restritivo relativamente aos direitos fundamentais. E um meio é proporcional, em sentido estrito, se as vantagens que promove superam as desvantagens que provoca.’ (Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, Malheiros, São Paulo, 2003, p. 102).

         Ora, como a lei em exame não faz nenhuma distinção, subentende-se que o desconto concedido ao pagamento de IPTU é permanente, ou seja, aquele que optar pela utilização de sistema de catação da água da chuva; sistema de reuso de água; sistema de aquecimento hidráulico solar; sistema de aquecimento elétrico solar; construção com material sustentável; utilização de energia passiva; sistema de utilização de energia eólica terá descontado anualmente do valor do referido tributo o percentual de 3% a 11%.

         Nunca é demais lembrar que o IPTU é o tributo mais importante arrecadado pelos Municípios, e, portanto, a sua principal fonte de receita, transformando, assim, a benesse legal em comento numa autêntica sangria do erário municipal, com ofensa à autonomia financeira do município, que é consubstanciada na capacidade de instituir e arrecadar os tributos de sua competência.

         De fato, com a renúncia de parcela expressiva de suas receitas, o Município de Porangaba não terá como fazer frente às suas despesas, deixando, assim, de realizar obras e serviços essenciais à população, de manter o funcionalismo, etc.

         É próprio da lei dispensar o pagamento de tributos em circunstâncias excepcionais. No caso em exame, a iniciativa tem caráter aparentemente extrafiscal, só se justificando, assim, sua existência como forma de tutelar o meio ambiente.

         A proteção ambiental incumbe ao Poder Público, na forma da Constituição, mas sob esse pretexto não é possível a edição de normas arbitrárias, desarrazoadas, como essa editada pela Câmara Municipal de Porangaba, que renuncia a parcela significativa da receita municipal, praticamente inviabilizando o governo municipal, que se verá privado de recursos essenciais ao funcionamento da máquina administrativa.

         Por outro lado, vale ressaltar, a concessão de benefícios fiscais não pode se pautar em critérios aleatórios, mas sim deve ser direcionada ao atingimento de uma finalidade de interesse público, e, por essa perspectiva, a lei em exame também merece ser condenada, à medida que os seus efeitos alcançarão uma parcela mínima da população, considerando-se os custos elevados para a implantação nas residências dos sistemas anteriormente mencionados, que proporcionam a redução do IPTU.

         Em verdade, os custos de instalação e manutenção desse tipo de equipamento são suportáveis apenas pelos mais abastados, nunca pela camada mais pobre da população, donde se conclui que o benefício fiscal em análise atenta contra a isonomia tributária, por igualar situações desiguais (como se pobres e ricos pudessem igualmente instalar e manter sistema de aquecimento solar, hidráulico, eólico nas suas residências para valerem-se do benefício tributário), desafiando o pressuposto lógico de que quem tem mais deverá pagar mais tributo (princípio da capacidade contributiva).

         Nunca é demais lembrar que o poder de tributar e o poder de isentar representam o verso e o reverso da mesma moeda. Nesse sentido, José Souto Maior Borges leciona que: ‘o poder de isentar apresenta certa simetria com o poder de tributar. Todos os problemas revelados na área do tributo podem ser estudados na ótica oposta, qual seja a isenção. Da mesma forma que existem limitações ao poder de tributar, há limites que não podem ser transpostos pelo poder de isentar, haja vista que ambos não passam do verso e reverso da mesma medalha. Ou seja, o poder de isentar é o próprio poder de tributar visto ao inverso (Isenções Tributárias, 2.ª ed., São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, p. 21).

         Assim, consoante o abalizado magistério de Sacha Calmon Navarro Coelho, “o princípio da capacidade contributiva, junto com outros, tais como o de igualdade e o da generalidade, podem atuar para o controle político e jurisdicional da tributação pervertida ou das perversões da extrafiscalidade. Nisso acerta em cheio o Prof. José Marques Domingues: ‘As isenções extrafiscais (tanto quanto as isenções fiscais – que preservam o necessário mínimo), quando não iluminadas por critérios como esses, transformam-se em privilégios constitucionais e são espúrias, desvirtuadas, informam a possível colisão dos regimes de incentivos com o princípio da igualdade concebido como princípio de capacidade contributiva’” (Comentários à constituição de 1988: Sistema Tributário, Rio de Janeiro, Forense, 2.ª ed., 1990, p. 332).

         Conclui-se, do exposto, que a iniciativa em comento ofende a ordem constitucional estadual vigente, especialmente os princípios da razoabilidade, igualdade tributária, interesse público e capacidade contributiva (CE, arts. 111, 160, § 1.º, e 163, II), impondo-se a sua exclusão definitiva da ordem jurídico-constitucional em vigor, como forma de alcançar-se o restabelecimento da justiça tributária, da paz e do equilíbrio social.

         Não se pode olvidar, ainda, que a legislação em questão cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo a designação de um responsável da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Agricultura e Meio Ambiente, para comparecer no local e analisar se as ações estão em conformidade com a presente Lei, bem como, a elaboração pelo Secretário Municipal do Desenvolvimento Econômico, Agricultura e Meio Ambiente de parecer conclusivo acerca da concessão ou não do benefício e, ainda, aos que obtiverem a concessão do benefício, a expedição de selo de “amigo do meio ambiente”, para afixar na parede de seu imóvel.

Não há dúvida de que, como tal, a mencionada legislação, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, também, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

         E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

            "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

            Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

            Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, porquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

            Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal." (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j.                      1º. 03.2010).

         Nessa conformidade, o parecer é pela procedência da ação, com a confirmação da liminar concedida.

São Paulo, 18 de maio de 2011.

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

    - Jurídico -

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