Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.º 0023373-80.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Iepê

Objeto de impugnação: art. 113 da Lei Orgânica Municipal de Iepê (com a redação dada pela Emenda n.º 07/09).

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 113 da Lei Orgânica Municipal de Iepê (com a redação dada pela Emenda n.º 07/09), que condiciona a alienação de bens móveis à prévia autorização legislativa. O Prefeito independe de autorização especial da Câmara para a prática de atos de administração ordinária. Caracterizada a violação da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º). Precedente do TJ/SP. Ação procedente.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Cuida-se de ação – movida pelo Prefeito Municipal de Iepê – na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade parcial do art. 113 da Lei Orgânica Municipal de Iepê, com a redação dada pela Emenda n.º 07/09, que reza o seguinte:

“Art. 113 – A alienação de um bem móvel do município, mediante venda, doação, permuta ou dação em pagamento, regulamentada por lei municipal, dependerá de autorização legislativa, interesse público manifesto, prévia avaliação.”

 

Segundo consta na inicial, a Lei Orgânica deve obediência aos princípios emanados na Constituição Federal (art. 29) e Estadual (art. 144), as quais exigem autorização legislativa prévia apenas para a alienação de bens imóveis; a formulação dessa mesma exigência para a alienação de bens móveis impede o Executivo de administrar; o poder de fiscalização da Câmara possibilita o controle e a revisão de qualquer ato administrativo que gere algum prejuízo ao erário municipal; a exigência legal viola o princípio da independência e harmonia entre os Poderes. 

Não houve concessão de liminar (fls. 64/69).

Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Carta Paulista, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada, ausente, porém, neste caso em que a disposição normativa disciplina matéria exclusivamente local.

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal de Iepê limitou-se a reproduzir a cronologia de votação do projeto de lei naquela Casa, posicionando-se, no final, a favor da exigência de prévia autorização legislativa por entender que os bens móveis merecem maior atenção e diligência da administração pública, antes de sua alienação, e por tratar-se da melhor forma de legitimar e validar o ato administrativo.  

Em resumo, é o que consta nos autos.

Data venia, e em que pese ao entendimento inicialmente externado pelo culto e digno Relator, a presente ação deve ser julgada procedente.

A princípio, cumpre registrar que a Constituição em vigor não exige prévia autorização legislativa para a alienação de bens móveis, mas somente de imóveis, e tal omissão, a meu ver, não dá margem a que o legislador infraconstitucional possa instituir tal exigência, ante sua implicação direta com a independência e harmonia entre os Poderes.

Deveras, somente à Constituição compete regular o complexo sistema de relacionamento entre os Poderes estatais, a ninguém mais.

Para J. H. Meirelles Teixeira,

‘A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que o fizer’ (Cf. ‘Curso de Direito Constitucional’, Forense Universitária, Organizado e atualizado por Maria Garcia, Rio de Janeiro, 1991, 1.ª edição, p. 592).

Por força do disposto no art. 49, XVII, da Constituição da República, é da competência exclusiva do Congresso Nacional ‘aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares’, enquanto que o art. 19, inciso IV, da Constituição do Estado de São Paulo atribui à Assembléia Legislativa competência para ‘autorizar a alienação de bens imóveis do Estado ou a cessão de direitos reais a eles relativos (...)’, não se contemplando, porém, nas referidas Cartas Políticas a necessidade de autorização legislativa para a alienação de bens móveis, o que desafia o princípio geral de que ‘toda competência excepcional deve dimanar da Constituição, deve fundar-se em dispositivo constitucional expresso’ (ob. cit., p. 593).

Assim, consoante o abalizado magistério de J. H. Meirelles Teixeira, ‘a nenhum Poder é lícito, fora dos casos estabelecidos pela Constituição, praticar atos ou funções que, pela sua natureza intrínseca, pelo seu conteúdo, correspondam à competência de outro poder e, muito menos, evidentemente, usurpar competência de outro, isto é, praticar atos e funções que a Constituição assinale a outro Poder. Do mesmo modo, salvo nos casos expressamente previstos e estabelecidos na Constituição, nenhum Poder poderá, direta ou indiretamente, limitar, embaraçar ou controlar a ação de outro, nem subordinar outro Poder à sua ação, seja condicionando-lhe a atividade, seja revogando-lhe atos e decisões (ob. cit., p. 594).

Logo, a ampliação dos atos administrativos que exigem prévia autorização legislativa para sua prática, além das hipóteses constitucionalmente previstas, tipifica ingerência indevida do Poder Legislativo na esfera de atribuições do Poder Executivo, a quem compete a administração geral do município.

Bem a propósito, ao examinar propositura semelhante, o Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça ementou que:

 

Ementa: Constitucional – Ação direta de inconstitucionalidade Expressãoautorização legislativa' presente no inciso I do art. 135 da Lei Orgânica do Município de Guatapará, a dispor sobre a alienação de bens móveis da Municipalidade – Ingerência do Legislativo na Administração local – Maltrato ao princípio da independência dos Poderes – Ofensa aos arts. 5.o caput; 37; 47, II e XIV; 111 e 144 da Constituição do Estado - Precedente - Inconstitucionalidade declarada. (TJ/SP, ADI n.º 133.640.0/6-00, Relator designado Des. IVAN SARTORI, j. em 19/12/2007, m.v.)

 

         Vale lembrar que, rotineiramente, a administração pública realiza a aquisição de bens móveis, pelos meios legalmente previstos (licitação, diretamente, etc.), sem necessitar de nenhuma autorização especial para a prática desse ato, mero corolário do poder de administrar que, no âmbito municipal, é atribuído ao Prefeito.

         No julgamento da ADI 92.604-0/5-00 (Rel. Des. Vallim Bellocchi), o Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça decidiu que: "É inconstitucional lei orgânica municipal que, em desrespeito ao princípio da independência de poderes, invade a órbita de competência do Poder Executivo, exigindo prévia autorização legislativa para aquisição de bens móveis".

         Ora, a aquisição e venda de bens móveis constituem verso e reverso da mesma moeda, tornando-se, assim, inconcebível que a alienação de bens e objetos inservíveis pela Administração Pública seja submetida ao controle prévio do Legislativo, inclusive quanto à conveniência e oportunidade de sua realização (juízo discricionário), o que, na prática, significa subordinar o Prefeito integralmente à vontade da Câmara.

         É certo que a Câmara detém o poder de controle externo de atos do Prefeito, a ser exercido com o auxílio do Tribunal de Contas, e nesse poder está implícita a competência de avaliar a alienação de bens móveis sob a perspectiva de legalidade, utilidade, economicidade, finalidade e interesse público.

         Porém, ao submeter a prática do ato administrativo (alienação de bens móveis) ao seu controle prévio, a Câmara está na realidade antecipando esse controle, que sempre deve ser realizado a posteriori, e, mais grave ainda, usurpando a competência do Prefeito, que, ao ter a autorização negada, como se verificou neste caso, não poderá praticar ato que é de sua exclusiva alçada.

         Nessa linha de raciocínio, já decidiu o Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça, na ADI 135.843.0/7-00 (Rel. Des. MARCUS ANDRADE), que:

 

"A Câmara, induvidosamente, detém o poder de fiscalização da atividade da Administração. Tal, contudo, deve obedecer determinados limites. Não pode extravasar sua área de atuação, nem mesmo nessa condição de ente fiscalizador, para impor obrigações aos particulares que contratam com a Administração, menos ainda, aos próprios órgãos públicos, subordinados ao Executivo, (...). Importa, na hipótese, isto sim, obstar a quebra da estrutura funcional diferenciada dos órgãos do Poder, permitindo a invasão de atribuição exclusiva do Executivo pelo Legislativo (art. 5o, da Constituição Estadual). Louvável a atitude do Poder Legislativo ma sentido de buscar uma melhor fiscalização do exercício das atividades e da aplicação do dinheiro público no Município. Inviável, contudo, a fórmula encontrada pela Câmara Municipal por fraturar o sistema jurídico constitucional do Estado (artigo 144, da Constituição Estadual).

 

         Conclui-se, daí, que a iniciativa da Câmara Municipal de Iepê de condicionar a alienação de bens móveis à prévia autorização legislativa caracteriza nítida ingerência na esfera de atribuições administrativas do Prefeito.

         Assim, por encontrar-se caracterizada a violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º), opina-se pela procedência desta ação.

São Paulo, 14 de julho de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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