Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0027335-14.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Barra do Turvo

Objeto: art. 83, inciso II, da Lei Orgânica do Município de Barra do Turvo.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade do. art. 83, inciso II, da Lei Orgânica do Município de Barra do Turvo. Previsão de suspensão do Prefeito por infração político-administrativa após a instauração do processo pela Câmara Municipal. Ofensa aos princípios federativo e da separação dos poderes. Procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Barra do Turvo, que visa a declaração de inconstitucionalidade do art. 83, inciso II, da Lei Orgânica daquele Município.

Sustenta o autor que o Município usurpou competência legislativa da União.

O dispositivo atacado teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 82).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 96/100), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 92/94).

Em resumo, é o que consta nos autos.

O pedido merece ser julgado procedente.

A expressão contida na parte final do art. 49, “caput”, da Constituição Estadual (“ou, nos crimes de responsabilidade, perante Tribunal Especial”) teve a sua eficácia suspensa pelo Supremo Tribunal Federal por força de liminar concedida na ADIn n.º 2.220-2/SP (STF., Rel. Min. Octávio Gallotti, j. em 1.8.2000). Nessa mesma ação também foram suspensos o art. 48, incisos I a VII, e seu parágrafo único; os §§ 1.º e 2.º do art. 49, e o item 2 do seu § 3.º, e o art. 50. E os §§ 5.º e 6.º do art. 49 já haviam sido declarados inconstitucionais pela aludida Corte Judiciária (v. ADIn n.º 1021-2, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 24.11.1995, p. 40.383).

Sucede que apenas a expressão contida na parte final do art. 49, “caput”, da Carta Paulista se reportava aos crimes de responsabilidade do Governador. A parte remanescente do supracitado artigo diz respeito somente à exigência de autorização prévia da Assembleia Legislativa como condição de procedibilidade à instauração de ação penal contra o Governador do Estado perante o STJ, pela prática de crime comum (Constituição Federal, art. 105, I, “a”).

Como se sabe, crime comum e crime de responsabilidade “são figuras jurídicas que exprimem conceitos inconfundíveis. O crime comum é um aspecto da ilicitude penal, ao passo que o crime de responsabilidade refere-se à ilicitude político-administrativa. O legislador constituinte utilizou a expressão crime comum, significando ilícito penal, em oposição a crime de responsabilidade, significando infração político-administrativa” (Cf. José Celso de Mello Filho, “Constituição Federal Anotada”, Saraiva, São Paulo, 1986, 2.ª ed., p. 270).

A questão fundamental que emerge do bojo da presente ação direta de inconstitucionalidade é simplesmente a de saber se a Constituição outorgou aos Municípios competência para definir infrações penais comuns ou de responsabilidade da autoridade executiva municipal e de seus vereadores e fixar regras peculiares ao seu processo e julgamento. E, neste particular, afigura-se claro que “os Municípios não dispõem de competência para legislar sobre essa matéria, que é privativa da União” (Constituição Federal, arts. 22, inciso I, e 85, parágrafo único).

De fato, para que o prefeito possa ser processado por crime de responsabilidade (ou infração político-administrativa) há necessidade de lei especial definindo-o, pois o brocardo nullum crimen sine typo também se aplica, integralmente, ao campo dos ilícitos administrativos, havendo necessidade de que a tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que a Suprema Corte tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se insere, por seu conteúdo penal, na órbita de competência exclusiva da União Federal (RTJ 166/147).

Assim, proclamou o Supremo Tribunal Federal que a definição de crimes de responsabilidade, imputáveis a quaisquer autoridades federais, estaduais, distritais ou municipais, é matéria de direito penal, e, consequentemente, de competência privativa da União, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal (STF – Pleno – ADin n.º 834-0/MT – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, Seção I, 9 abr. 1999, p. 2; STF – Pleno – ADin n.º 834-0/MT – medida liminar – Rel. Min. Celso de Mello – Ementário STF n.º 169; STF – Pleno – ADin n.º 102-7/RO – medida liminar – Rel. Min. Paulo Brossard, Diário da Justiça, Seção I, 17 nov. 1989, Ementário STF n.º 156).

Igualmente, entendeu a mais alta Corte Judiciária desse país que o estabelecimento de normas de processo e julgamento dos crimes de responsabilidade é da competência privativa da União, em virtude dos artigos 85, parágrafo único, e 22, I, da Constituição Federal.

Dessa forma, os princípios básicos que regem a responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o processo e julgamento, ficando afastada qualquer previsão da Lei Orgânica Municipal, diversa do preceituado na legislação federal pertinente.

Daí ser irrefutável a conclusão de que a disposição normativa ora contestada, ao prever o afastamento do Prefeito, caso venha a responder processo por crime ou infração político-administrativa, acabou por invadir a esfera de competência privativa da União, a quem cabe dispor sobre essa matéria (CF., art. 22, I).

E, nos termos do art. 144, da Carta Paulista, os municípios têm autonomia legislativa, mas ficam compelidos a atender aos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

Esse Colendo Órgão Especial, contando com o atual entendimento dessa Procuradoria-Geral, tem reiteradamente aplicado tal dispositivo como suporte exclusivo e necessário para a eliminação de regras que hostilizam o texto fundamental federal.

Nesse sentido, caminhou a decisão relatada pelo eminente Desembargador Oliveira Ribeiro, em parte aqui transcrita:

“Além disso, é de se ver que em abono do propósito declaratório da inconstitucionalidade do artigo discrepante, a Constituição do Estado de São Paulo, sem repetir expressamente a fixação de ‘quorum’ de dois terços previsto na Constituição da República, não deixou de especificar o seu entendimento no sentido de impor observância desta exigência, fazendo-o com clareza posto que de modo indireto.

Eis o texto do seu artigo 144: ‘Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.[1]

Assim também foi decidido na Adin nº 110.606.0/3, em que foi relator o eminente Desembargador Marco César.

Sendo assim, o dispositivo examinado é inconstitucional, por afronta ao art. 144, da Constituição Bandeirante.

Nestes termos, opino pela procedência do pedido para declarar inconstitucional o art. 83, inciso II, da Lei Orgânica do Município de Barra do Turvo.

São Paulo, 17 de maio de 2011.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

       Subprocurador-Geral de Justiça

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[1] Adin nº 097.085-0/1-00, Rel. Des. Oliveira Ribeiro, j. 10/3/2004