Parecer
Autos nº
0029076-89.2011.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de Divinolândia
Objeto: Lei
Municipal nº 1.980, de 30 de julho de 2010
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº. 1.980, de 30 de julho de 2010, que dispõe sobre a inserção dos nomes dos vereadores autores de projetos de lei e das respectivas siglas partidárias nas publicações das leis complementares e ordinárias do Município de Divinolândia.
2) Inconstitucionalidade material. Ofensa ao princípio da impessoalidade. Arts. 111 e 115, § 1º, da Constituição Paulista.
3) Parecer pela procedência.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Divinolândia, tendo como alvo a Lei Municipal nº. 1.980, de 30 de julho de 2010, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a inserção dos nomes dos vereadores autores de projetos de lei e das respectivas siglas partidárias nas publicações de textos promulgados nos termos da Lei Orgânica Municipal de Divinolândia.
Alegação de que houve invasão da esfera de competência legislativa privativa da União e afronta ao princípio constitucional da impessoalidade.
Foi deferido o pedido de liminar (fls. 35 a 37).
A Câmara Municipal prestou informações (fls. 43 a 48), aduzindo que a lei impugnada seria constitucional, por existir lei complementar estadual dispondo sobre a mesma matéria (LC nº. 9.893/97, alterada pela LC nº. 14.005/10) e porque são poucas as leis de iniciativa de parlamentares, o que não alteraria a situação anterior à sua edição.
O Senhor Procurador-Geral do Estado foi devidamente citado e se manifestou a fls. 61 a 63.
É o relato do essencial.
Inicialmente, mostra-se de grande valia trazer à colação o texto da lei impugnada. Confira-se:
Lei nº
1.980, de 30 de julho de 2010.
“Disciplina
a matéria atinente à inserção dos nomes
dos vereadores autores de projetos de lei e das respectivas siglas partidárias
nas publicações, e dá outras providências”.
Autores: Ismar Ernani de Oliveira
Fernando Henrique Dias
Fernando
Henrique Dias, Presidente da Câmara Municipal de Divinolândia, Estado de São
Paulo, no uso de suas atribuições legais, faz saber que a Câmara aprovou,
promulgou e decreta:
Artigo 1º -
A lei complementar e a lei ordinária ao ser sancionada e promulgada pelo Chefe
do Executivo, deverá conter, abaixo da epígrafe, o nome do Vereador autor do
projeto que lhe deu origem, bem como a sigla do partido a que pertença.
Artigo 2º -
A sigla partidária deverá ser publicada mesmo quando o autor esteja investido
nas funções elencadas no artigo 21, I, da Lei Orgânica Municipal.
Parágrafo
único – Considerar-se-à, para os fins do disposto nesta lei, a sigla do partido
que o vereador esta filiado à época da apresentação do projeto.
Artigo 3º -
O disposto nos artigos anteriores aplica-se às leis promulgadas nos termos do
parágrafo 7º, do artigo 33 da Lei Orgânica Municipal.
Artigo 4º -
Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Como se vê, basta a singela leitura da Lei nº. 1.980, de 30
de julho de 2010, para notar que padece de inconstitucionalidade substancial,
uma vez que ofende nitidamente o princípio constitucional da impessoalidade,
porquanto viola o
disposto nos arts. 111 e 115, § 1º, da Constituição Paulista. In verbis:
“Art. 111 - A administração pública
direta, indireta ou fundacional, de qualquer
dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e
interesse público.
(...)
Art. 115 - Para a
organização da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações
instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o
cumprimento das seguintes normas:
(...)
§ 1º - A publicidade dos atos,
programas, obras, serviços e campanhas da administração pública direta,
indireta, fundações e órgãos controlados pelo Poder Público deverá ter caráter educacional, informativo
e de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos e imagens que
caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
(...)”.
(g.n.)
Preceitos estes
que encontram paralelo na Constituição Federal:
“Art.
37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 1º - A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos
órgãos públicos deverá ter caráter
educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes,
símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou
servidores públicos.
(...)". (g.n.)
Tanto a Constituição Estadual quanto a Federal asseguram que os princípios supramencionados são de observância obrigatória por todos os Poderes de cada ente federado, inclusive o Legislativo Municipal. Logo, ao exercer sua competência de editar leis devem os Municípios, pela relação de verticalidade existente entre as Constituições (Estadual e Federal) e as lei infraconstitucionais, observar os preceitos das primeiras emanados.
Situação
idêntica à dos autos já foi decidida, por unanimidade de votos, pelo Colendo
Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Ação
Direta de Inconstitucionalidade n. 153.963-0/6-00, proposta pelo Prefeito do
Município de Santa Isabel. Segue a ementa:
“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Complementar n°
112/25.06.2007, do Município de Santa Isabel, de iniciativa parlamentar e
promulgada após a derrubada do veto do alcaide, que acrescenta à Lei Complementar
Municipal n° 94/06.06.2005, que dispõe sobre normas técnicas de elaboração legislativa,
o artigo 5º-A – o dispositivo que, pretextando dar tratamento legal sobre
normas técnicas de elaboração legislativa, manda ser indicada a autoria das
leis, viola o principio da impessoalidade imposto à Administração Pública pelo
art. 111 e § 1º do art. 115, da Constituição Estadual - ação procedente” (Rel. Des. Palma Bisson. Data de julgamento:
06.07.2008, g.n.).
Extrai-se,
ainda, do referido acórdão, relatado pelo Desembargador Palma Bisson, importante
lição a respeito da inconcebível “personalização”
das leis. Confira-se:
“(...) o dispositivo que, pretextando dar tratamento legal sobre
normas técnicas de elaboração legislativa, manda ser indicada a autoria das
leis, viola o princípio da impessoalidade imposto à Administração Pública pelo
art. 111 e § I do art. 115, da Constituição Estadual.
Não o salva dessa
gritante inconstitucionalidade a circunstância de leis haver, do Município e do
Estado de São Paulo, dispondo no mesmo sentido, que a soma de leis inconstitucionais
não tem força para gerar constitucionalidade.
Tampouco o
argumento segundo o qual propiciaria informação ao povo o salva, desde que firmado
o princípio da impessoalidade em especial mediante a proibição da publicidade
dos atos - leis inclusive - contendo nomes, símbolos ou imagens.
A publicação da
lei, aliás, ‘consiste em
uma comunicação dirigida a todos os que devem cumprir o ato normativo,
informando-os de sua existência e de seu conteúdo’ (ALEXANDRE DE
MORAES, Direito Constitucional, 22a edição, São Paulo, Editora Atlas, 2007, págs.
649), para o ato em nada interessando ou devendo interessar sua autoria, na
medida em que sua aprovação é o necessário e suficiente para torná-la, no dizer
de LÍVIA MARIA ARMENTANO KOENIGNSTEIN ZAGO, ‘expressão da vontade geral e impessoal do povo’ (0 Princípio da Impessoalidade, Rio de Janeiro
Editora Renovar, 2001, pág. 272).
Daí que
pessoalizar a lei ou atribuir-lhe autoria depois de aprovada custa sim violar o
princípio da impessoalidade, este que, segundo a lição de CARLOS ARI
SUNDFELD, invocada pela autora dessa monografia, busca ‘impedir a ‘privatização' da atividade pública, é dizer, a utilização
das competências estatais para o atingimento de finalidades pessoais contra o interesse
geral’, e isto ‘Porque a atividade
do Estado é impessoal, não pode ser orientada por interesses pessoais, não pode
ser embebida de subjetividade’
(pág.
299).
Ora, embeber de
subjetividade as leis de Santa Isabel é dotá-las, sem dúvida, do propósito promocional
que a norma constitucional firmemente coíbe.
Outra finalidade deveras
é impossível divisar para a personalização ditada pela norma aqui atacada, ainda
mais quando se vê que, para os vereadores, a possibilitada autoria legislativa chega
ao extremo de combinar a declinação de seus nomes com a de seus partidos.
Diante do exposto, com fundamento no art. 111 e
§ 1° do art. 115, da Constituição Estadual, eu julgo procedente esta ação
direta de inconstitucionalidade para definitivamente suspender, agora com
efeito ex tunc, a vigência e a eficácia da Lei Complementar n° 112/25.06.2007,
do Município de Santa Isabel.” (g.n.)
Na
mesma linha, o Ilustre Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que:
“... os atos e
provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica
mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário. Este
é um mero agente da Administração Pública, de sorte que não é ele o autor
institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade
estatal (...) É que a ‘primeira regra de estilo administrativo é a objetividade’,
que está em estreita relação com a impessoalidade. Logo, as realizações
administrativo-governamentais não são do
funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as
produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra,
quando, no 1º do art. 37, proíbe que constem
nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de
autoridades ou servidores públicos em publicidades de atos, programas, obras,
serviços e campanhas dos órgãos públicos” (Curso de Direito Constitucional
Positivo, 22ª ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 647 e 648, g.n.).
EMERSON
GARCIA compartilha desse entendimento e afirma que em uma de suas vertentes o
princípio da impessoalidade “estatui que o autor dos atos estatais é o órgão
ou a entidade, e não a pessoa do agente...” (Improbidade Administrativa,
3 ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2006, p. 49, g.n.).
Frisa-se, aqui, que o caput do
art. 37 da CF dispõe que os princípios nele contidos são de observância
obrigatória por qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios.
Por
isso, entre os “atos” referidos no § 1º, e repetidos no art. 115, § 1°, da
Constituição Bandeirante, também se inserem os provenientes do Poder
Legislativo Municipal. E, como ensinam JOSÉ AFONSO DA SILVA e EMERSON GARCIA, o
autor dos atos estatais é o órgão ou entidade de onde proveem, e não a
autoridade que os subscreve.
É
por essa razão que há disposição expressa no sentido de que a assinatura que
deve constar ao final do texto de lei é a de quem a promulga, a depender do
caso, o Chefe do Executivo ou o Presidente da Câmara, que representam,
respectivamente, o Poder Executivo e o Legislativo.
De
outra senda, impende ressaltar que a alegação da Câmara Municipal de que a lei
questionada seria constitucional em razão da existência de lei estadual com o
mesmo teor, não merece prosperar, tendo em vista a impossibilidade de lei
federal ou estadual servir como parâmetro de aferição de constitucionalidade de
lei municipal.
A
similaridade entre lei ou ato normativo municipal e lei estadual em nenhuma
hipótese se apresenta como argumento hábil a sanar a inconstitucionalidade
material de uma lei municipal, máxime quando esta viola frontalmente princípio
norteador da atividade estatal, tal como o da impessoalidade, que, quando
ofendido, indubitavelmente resulta em desvio de finalidade, afastando-se,
portanto, da premissa maior do Estado, qual seja, o interesse público.
Aliás,
o controle de constitucionalidade na via abstrata, concentrada e direta perante
os Tribunais de Justiça, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal,
tem como único parâmetro a Constituição Estadual. Por conseguinte, o fato de
haver lei estadual dispondo no mesmo sentido de lei municipal não tem condão
para gerar constitucionalidade da última.
Mas não é só.
Nas
suas informações, no intuito de preservar sua malfadada criação legislativa, a
Câmara sustenta que a inserção do nome dos vereadores, bem como do respectivo
partido político, em nada alteraria a situação atual, pois seriam poucos os
projetos de iniciativa parlamentar.
Ora, essa afirmação equivale a dizer
que não se pode violar “muito” um princípio constitucional, mas fazê-lo em
menor escala não acarretaria inconstitucionalidade. Tal argumento é simplesmente
inconcebível.
Vale
lembrar que o controle aqui é abstrato, e não concreto. Em sede de ação direta
de inconstitucionalidade, a análise da norma questionada é realizada sem
adentrar no exame de seus efeitos concretos. Se ela traz defeito insanável, não
importa seu grau de incidência; ainda assim continuará sendo inconstitucional,
e, em verdade, não deveria nem sequer fazer parte do ordenamento jurídico.
É de se pensar ainda, que, se a
alegação de que a presente circunstância em nada se modificaria com a edição da
lei impugnada fosse verdadeira, qual seria, então, a real intenção dos
parlamentares que tanto insistiram na promulgação da lei, derrubando inclusive
o veto do Chefe do Executivo?
Já consta dos textos de lei a
identificação do Chefe do Executivo ou a do Presidente da Câmara Municipal,
representantes, respectivamente, do Poder Executivo e do Legislativo
(representante de todos os parlamentares eleitos pelo povo), por isso
desnecessária a inserção do nome e do partido político do parlamentar que
apresenta o projeto da lei.
A propósito, o processo legislativo é
de fácil acesso, suas informações são públicas. Se a intenção fosse tão somente
informativa, oportuno seria lembrar que existiriam outros meios para alcançar
tal fim; mesmo porque, se a lógica da lei fosse o controle da atuação dos
parlamentares, deveria fazer parte do texto todo o trâmite de sua elaboração,
desde a apresentação do projeto até sua promulgação, o que, na prática, demonstra-se
totalmente inviável.
Oportuna
preleção, nesse sentido, pode ser destacada de parte do acórdão proferido, por
votação unânime, pelo Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 700008125072, proposta pelo
Procurador-Geral de Justiça daquele Estado, em caso análogo ao dos autos.
Anote-se:
“O
processo legislativo tem início por ação de alguém, mas nem por isso o
resultado pode-lhe ser creditado por inteiro, na medida em que é a legislativa
atividade essencialmente colegiada, para ficarmos apenas com a que se
desenvolve no parlamento.
Assinalar-se, quando da publicação da lei, quem
tenha sido o autor do projeto que lhe deu origem, soa como publicidade pessoal,
sem nenhum proveito público.
(...)
O que se observa, em casos como o destes autos,
é algo já apontado por ilustre administrativista: o fato de que o princípio da
pessoalidade pode ser visualizado por ‘ângulos
diversos’, evidenciando todos o ‘intuito
essencial de impedir que fatores pessoais, subjetivos sejam os verdadeiros móveis
e fins das atividades administrativas’ (também aqui, mutatis mutandi). O que se busca é ‘que predomine o sentido de função, isto é, a idéia de que os poderes
atribuídos finalizam-se no interesse de toda a coletividade, portanto a
resultados desconectados de razões pessoais’ (ODETE MEDAUAR, Direito
Administrativo Moderno, 6ª ed., p. 152).
Vai meu voto, destarte, pela procedência
desta ação, decretando-se a inconstitucionalidade da Lei 3.120, de 19.9.03, do
Município de Taquara.” (Rel. Des. Antônio Janyr Dall’Agnol Junior. Data de
julgamento: 31/05/2004. Data de publicação: DJ 09/08/2004).
Por fim, apesar
de a lei impugnada padecer de vício material, é importante ressalvar que a
alegação do autor _ de que a matéria que cuida da elaboração de leis é de
competência legislativa privativa da União _ não merece prosperar, tendo em
vista a autonomia legislativa dos entes federativos, inclusive dos Municípios.
Isso
porque, não há na Constituição Estadual ou Federal qualquer menção de que a
matéria atinente à elaboração de leis seja de atribuição privativa da União ou
concorrente entre esta e os Estados.
Nesse
diapasão, é indispensável frisar que, embora o Município possua independência
para regulamentar, em sua esfera de atuação, a elaboração, redação, alteração e
consolidação de leis, não pode, sob qualquer pretexto, transgredir princípios
constitucionais, tal como o da impessoalidade.
Dessa forma,
a inobservância de princípios constitucionais acarreta vício material insanável
à lei, sendo a declaração de sua inconstitucionalidade medida de rigor.
Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 1.980, de 30 de julho de 2010, do Município de Divinolândia.
São Paulo, 1º de junho de 2011.
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
md/drc