Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0032213-79.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Engenheiro Coelho

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei nº 675, de 12 de novembro 2010, do Município de Engenheiro Coelho

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Proibição do Serviço de Água e Esgoto do Município de cortar o asfalto para interrupção do fornecimento de água, quando se tratar de dívida de pagamento. 2) Ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47 II e XIV, da Constituição Paulista). 3) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Engenheiro Coelho, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 675, de 12 de novembro de 2010, que proíbe o Serviço de Água e Esgoto do Município de cortar o asfalto para interrupção do fornecimento de água, quando se tratar de dívida de pagamento.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que isso revela interferência na competência legislativa reservada ao chefe do poder executivo.

A liminar foi indeferida (fls. 33/34).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 47/48, em defesa da constitucionalidade da norma .

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 44/45).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado:

“ART. 1º - Fica o SAEEC (Serviço de Água e Esgoto do Município de Engenheiro Coelho), proibido de realizar o corte de asfalto, guias e calçadas, no procedimento da realização da interrupção de fornecimento de água nas residências e comércios do município de Engenheiro Coelho, quando se tratar de dívida de pagamento.

ART. 2º - O SAEEC fica responsável pela apresentação e entrega antecipada de no mínimo 7 (sete) dias úteis do 'aviso de corte' com data agendada para a realização da interrupção do fornecimento, caso não seja feito o pagamento, inclusive, discriminando os valores e os meses que a residência ou comércio possui débitos.

ART. 3º - Fica proibida a entrada do servidor ou contratado do SAECC na residência ou comércio que não tiver o responsável do imóvel no momento da visita.

Parágrafo Único - A entrada do servidor ou contratado do SAEEC, sem autorização e fora da data agendada, ocasionará a abertura do competente processo disciplinar, com aplicação das disposições do Estatuto do Servidor Público, inclusive com aplicação de multa de 10 (ufesp) para o caso de empresa contratada."

 

        A lei, de iniciativa parlamentar, cria vedações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, ao prever a proibição do corte de asfalto, guias e calçadas, para a interrupção do fornecimento de água, quando se tratar de dívida de pagamento e do ingresso do servidor na residência ou comércio para efetivação da medida, quando não estiver presente o responsável pelo imóvel.

Não há dúvida de que a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708).

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (op. cit. p. 712).

 Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

            E, mais recentemente, fez-se constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn n. 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn n. 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)

            Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 675, de 12 de novembro de 2010, do Município de Engenheiro Coelho.

São Paulo, 7 de julho de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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