Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0052691-11.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Atibaia

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.963, de 4 de março de 2011, de Atibaia

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 3.963, de 4 de março de 2011, de Atibaia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a política Municipal de Apoio ao Cooperativismo, e dá outras providências”.

2)      Criação de verdadeiro “programa” governamental. Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Criação de despesas sem fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Atibaia, tendo como alvo a Lei Municipal nº 3.963, de 4 de março de 2011, de Atibaia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a política Municipal de Apoio ao Cooperativismo, e dá outras providências”.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.

Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 17).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 25, 27/28).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 31 e ss).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 3.963, de 4 de março de 2011, de Atibaia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a política Municipal de Apoio ao Cooperativismo, e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

CAPÍTULO I – DA POLÍTICA MUNICIPAL DE APOIO AO COOPERATIVISMO

Art. 1º. A Política Municipal de Apoio ao cooperativismo terá como finalidade o conjunto de atividades exercidas pelo Poder Público e privado que venha a beneficiar direta ou indiretamente o setor cooperativista na promoção do desenvolvimento social, econômico, desde que reconhecido seu interesse público.

Art. 2º. Para efetivar a política a que se refere esta lei, compete ao Poder Público Municipal:

I – prestar assistência educativa e técnica às cooperativas sediadas no Município de Atibaia;

II – estimular a forma cooperativa de organização social e econômica nos diversos ramos de atuação, com base nos princípios gerais do cooperativismo e da legislação vigente;

III – promover a inclusão do estudo do cooperativismo nas escolas, visando o surgimento e o fortalecimento de uma cultura cooperativista no seio da população e a difusão da atividade cooperativista a uma mudança de parâmetros de organização da produção, do consumo e do trabalho;

IV – apoiar a promoção de estudos, pesquisas e eventos de forma a contribuir com o desenvolvimento da atividade cooperativista;

V – divulgar as políticas governamentais para o setor;

VI – propiciar maior capacitação dos cidadãos pretendentes ou associados das cooperativas;

VII – fomentar o desenvolvimento e autogestão de cooperativas de trabalho legalmente constituídas; e estimular a formação de cooperativas de servidores públicos municipais, apoiando técnica e operacionalmente sua formação e seu desenvolvimento.

§ 1º. O desenvolvimento da presente política, não implicará em intervenção municipal, mas em fortalecimento das cooperativas e na manutenção de sua autonomia;

§ 2º. Os objetivos das cooperativas serão definidos em seus respectivos estatutos e sua estruturação legal segue a Legislação Federal pertinente.

Art. 3º. O município de Atibaia poderá adotar políticas de incentivo ao cooperativismo dando especial atenção a sua difusão nos meios estudantis, através das seguintes ações;

I – implantação do cooperativismo no currículo escolar do ensino fundamental, com professores devidamente qualificados;

II – desenvolvimento da cultura cooperativista através de atividades que visem o público em geral, bem como através dos meios de comunicação social;

III – implantação de práticas pedagógicas com fins cooperativistas, especialmente nos programas voltados ao desenvolvimento econômico e social e a preservação ambiental;

IV – realização de parcerias com as sociedades cooperativas para utilização dos estabelecimentos públicos municipais de ensino para programa educacional e atividades sociais;

Parágrafo único – O Município poderá realizar parcerias com as cooperativas educacionais através de convênio.

CAPÍTULO II – DOS PRINCÍPIOS

Art. 4º. Os princípios basilares do incentivo municipal ao cooperativismo do trabalho são:

I – todos os cidadãos têm o direito à formação de cooperativas, como mecanismo de organização da força de trabalho;

II – as sociedades cooperativas são elementos do sistema econômico;

III – o gerenciamento do sistema cooperativo de trabalho em Atibaia deve ser transparente e democrático, com instrumentos de participação e controle pela sociedade civil e organizada.

CAPÍTULO III – DOS OBJETIVOS

Art. 5º. O incentivo municipal do cooperativismo de trabalho tem os seguintes objetivos:

I – assegurar a transparência e a garantia do interesse público no processo de formação e contratação de sociedades cooperativas de trabalho pelo Poder Público Municipal, observada a isonomia de tratamento entre proponentes cooperados e não-cooperados;

II – permitir o amplo acesso e a divulgação do cooperativismo de trabalho, como elemento moderno e legal para a organização do trabalho; e

III – prevenir a fraude na utilização do cooperativismo de trabalho.

CAPÍTULO IV – DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 6º. Poderão habilitar-se para processos de licitação promovidos pelos órgãos da Administração Direta e Indireta do Município, em igualdade de condições entre cooperados e entidades não cooperadas, as sociedades cooperativas legalmente constituídas, observadas as normas previstas na legislação em vigor.

Art. 7º. O Executivo Municipal regulamentará esta lei em 180 dias, a partir da data de sua publicação.

Art. 8º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo, pois ao criar verdadeiro “programa de governo” destinado ao incentivo ao “cooperativismo”, imiscuiu-se na esfera daquilo que nitidamente cabe ao Poder Executivo decidir e realizar.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Não bastasse isso, a lei impugnada provocará, evidentemente, realização de despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes de receita para tanto.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.963, de 4 de março de 2011, de Atibaia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a política Municipal de Apoio ao Cooperativismo, e dá outras providências”.

São Paulo, 08 de setembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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