Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0057162-70.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Objeto: Lei nº 4.398, de 1º de setembro de 2010, do Município de Suzano

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 4.398, de 1º de setembro de 2010, do Município de Suzano. “Institui a ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’, nos órgãos públicos do Município de Suzano a ocorrer no mês de maio de cada ano”.   Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 47, incs. II e XIV e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por objeto a Lei nº 4.398, de 1º de setembro de 2010, daquele Município, que “Institui a ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’, nos órgãos públicos do Município de Suzano a ocorrer no mês de maio de cada ano”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a administração pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 23).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 35/36), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 28/29).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Suzano assim dispõe:

“Art. 1º - Passa a fazer parte integrante do calendário do município de Suzano a ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’ que deverá ocorrer, anualmente, no mês de maio, em semana que compreenda o dia 28 (vinte e oito), data em que se comemora o ‘Dia Internacional da Luta pela Saúde da Mulher’ e o ‘Dia Nacional de Combate à Mortalidade Materna’.

Art. 2º - As comemorações da ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’ deverão compreender atividades voltadas à questão da saúde da mulher, com destaque para informação, orientação e disponibilização de recursos materiais e humanos para realização de exames diagnósticos de pouca complexidade e baixo custo.

Art. 3º- As atividades desenvolvidas durante a ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’ deverão ocorrer em todos os estabelecimentos onde funcionem órgãos da Administração Pública Municipal direta, indireta, suas Autarquias e Fundações, assim como empresas públicas e sociedade de economia vista que contém com participação de capital do município, sempre em local acessível a todas as funcionárias e prestadoras de serviços.

§1º. As atividades a que se referem o ‘caput’ deste artigo, compreenderão sem prejuízo de outras:

I- Debates com profissionais de saúde, que tenham como tema a saúde da mulher nas diversas fases de sua vida: pré-adolescência, gestação, parto, menopausa e pós-menopausa;

II- distribuição de material informativo sobre a questão da saúde da mulher, formas de prevenção a doenças e a necessidade da realização dos exames rotineiros periódicos;

III- realização, em espaço adequado, de exames clínicos de resultado imediato, tais como verificação de pressão arterial, glicemia, colesterol, dentre outros;

IV- mostra de vídeos, filmes e documentários que tenham como tema central a questão da saúde da mulher.

§ 2º. Todas as atividades realizadas nos diversos órgãos da Administração deverão ser amplamente divulgadas a fim de atingir um maior número de servidoras.

Art. 4º. O Executivo e as Secretarias às quais estejam vinculadas aos órgãos públicos promoventes das atividades da ‘Semana da Saúde da Mulher Servidora Municipal’ deverão buscar apoio e subsídio junto à Secretaria de Saúde, Coordenadorias e Secretarias da Mulher, Conselhos Municipais Feminina e Núcleos do Gênero mantidos pelas Universidades, públicas ou privadas, dentre outras, sobre os temas a serem abordados durante as comemorações.

Art. 5º. Todos os órgãos da Administração deverão manter, em local acessível ao público e de fácil visualização, material gráfico contendo as informações quanto aos dados estatísticos de incidência de doenças na população feminina, suas causas, métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento, dando ênfase à divulgação das políticas públicas e programas voltados à saúde da mulher.

Art. 6º. A Administração Pública fica autorizada a firmar convênio ou contratar serviços de entidades públicas ou privadas, associações, organizações, dentre outras, que tenham por atividade o desenvolvimento de estudos, pesquisas e promoção da saúde da mulher.

Art. 7º. As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias consignadas no orçamento vigente e suplementadas, se necessário.”

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa de atendimento à saúde da mulher servidora municipal, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, conseqüentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com a disposição do artigo 25 da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

 

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

 

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.398, de 1º de setembro de 2010, do Município de Suzano.

 

São Paulo, 12 de julho de 2011.

 

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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