PARECER EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo n.º 0057175-69.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto de impugnação: Lei n.º 4.423, de 05 de novembro de 2010, do Município de Suzano.

 

 

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 4.423, de 05 de novembro de 2010, de Suzano, que dispõe sobre a colocação de cadeiras de rodas nas portarias dos prédios residenciais, comerciais e similares do Município de Suzano. Alegação de afronta aos arts. 5.º, 25, 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Função normativa da Câmara. Lei geral e abstrata, a qual dispõe sobre assunto de interesse local (CF, art. 30, I) e que não é de iniciativa reservada. Norma cujo conteúdo, demais, é perfeitamente compatível com a Constituição, porquanto incumbe ao Poder Público proteger e integrar à sociedade os idosos e portadores de deficiência (CF, arts. 23, II, e 230). Ação improcedente.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

Cuida-se de ação – movida pelo Prefeito Municipal de Suzano – na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade da lei em epígrafe, de origem parlamentar (PL n.º 368/2009 – Autoria: Vereador Arnaldo Marin Júnior), que apresenta o seguinte conteúdo:

 

Lei n.º 4423/10, dispõe sobre a colocação de cadeiras de rodas nas portarias dos prédios residenciais, comerciais e similares do Município de Suzano e dá outras providências.

Projeto de Lei n.º 368/2009

Autoria: Vereador Arnaldo Marin Júnior

VER. ISRAEL SAMPAIO DE LACERDA FILHO, Presidente da Câmara Municipal de Suzano, no uso de suas atribuições legais e conforme o disposto no artigo 45, § 5.º, da Lei Orgânica do Município;

Faz saber que a Câmara Municipal de Suzano aprova e ele promulga a seguinte Lei:

Art. 1.º Fica determinado que todos os prédios residenciais, comerciais e similares do Município de Suzano, deverão adequar suas dependências, mantendo cadeiras de rodas à disposição de pessoas portadoras de deficiência física ou com mobilidade reduzida de caráter temporário ou permanente.

Parágrafo único- As cadeiras de rodas destinam-se para realizar deslocamentos de pessoas a que se refere o caput e deverá ser posicionada na portaria destes.

 Art. 2.º - As despesas decorrentes para a aquisição das cadeiras de rodas correrão por conta dos proprietários e/ou condomínios existentes no Município.

Art. 3.º O Poder Executivo Municipal, através  de seus órgãos competentes, normatizará e fiscalizará o cumprimento desta Lei.

Art. 4º - O Poder Executivo Municipal regulamentará a presente Lei no prazo de 90 (noventa) dias, a contar da data da publicação.

Art. 5.º - As despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

Art. 6.º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Sala da Presidência da Câmara Municipal de Suzano, em 04 de novembro de 2010.

Vereador ISRAEL SAMPAIO DE LACERDA FILHO

Presidente

KAZUHIRO MORI

Secretário – Diretor Legislativo

 

Segundo consta na inicial, a referida lei viola o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, pois interfere na órbita de atuação do Executivo, e também o princípio da legalidade, ante a existência de legislação federal a disciplinar o assunto, além de gerar despesa sem a indicação da correspondente fonte de custeio, incompatibilizando-se, por esses variados aspectos, com os arts. 5.º, 25, 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

Houve concessão de liminar (fls. 23/24).

 

Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição Estadual, o Procurador-Geral do Estado fez constar em sua manifestação que não há interesse estadual na defesa de lei que trata de matéria exclusivamente local (fls. 38/40).

Notificado a prestar informações, o Presidente da Câmara Municipal de Suzano limitou-se a estabelecer a cronologia de votação do projeto de lei naquela Casa (fls. 42/43).

 

Em resumo, é o que consta nos autos.

 

Data venia, em que pese à fundamentação exposta na inicial, a ação é improcedente.

 

Com efeito, a matéria sobre a qual a Câmara legislou – colocação de cadeiras de rodas nas portarias dos prédios residenciais, comerciais e similares no Município de Suzano – é de interesse local e sua iniciativa não é reservada, mas sim geral ou concorrente.

 

Em verdade, tal iniciativa é perfeitamente compatível com a Constituição Federal, que, no seu art. 23, II, dispõe que: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da (...) proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”’, e, no seu art. 230, atribui ao Estado “o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

 

Por outro lado, sob a perspectiva do princípio da igualdade, nenhuma censura merece tal iniciativa, visto que os destinatários da referida normas são pessoas que apresentam dificuldades de locomoção (idosos e portadores de deficiências físicas).

 

Acrescente-se, ainda, que, o argumento exposto na inicial de que essa lei gera o aumento da despesa pública é juridicamente inconsistente, e não condiz com a realidade, pois as despesas decorrentes  para a aquisição das cadeiras de rodas correrão por conta dos proprietários e/ ou condomínios existentes no Município.

 

 De igual modo insubsistente é a alegação de que houve afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, com a edição dessa lei, visto que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios obedecerá ao princípio da legalidade (CF, art. 37), a par de outros, o que significa dizer que à administração pública “só é permitido fazer o que a lei autoriza” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros, 28.a edição, 2003, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, p. 86).

 

Sendo assim, o Administrador Público não pode se recusar ao cumprimento de uma lei regularmente editada pela Câmara, no exercício pleno de sua competência normativa, a versar sobre assunto de interesse local, sob o argumento de que ela interfere na sua esfera de atribuições.

 

Trata-se de raciocínio falho, autêntico sofisma (como a lei, que rege toda atividade administrativa, por força do princípio da legalidade, não pode interferir na órbita da função executiva?), pois a administração pública deve obediência irrestrita ao princípio da legalidade, ou seja, toda atividade administrativa é pautada na lei, mesmo no caso do exercício de poder discricionário, que igualmente deriva da lei e deve ser exercido nos estritos limites por esta definidos. 

 

É bem verdade que há matérias que são de iniciativa reservada ao Executivo (CE, art. 24, § 2.o, 1 a 4), mas não se trata aqui dessa hipótese, que, aliás, nem sequer é cogitada na inicial, pois a Constituição não contemplou nenhuma reserva desse tipo em relação às leis que se disponham a proteger idosos e pessoas portadoras de deficiência física.

 

Quanto ao disposto no art. 24, XIV, da CF, que diz competir “à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente (g.n.) sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência”, é bem de ver que a dita competência concorrente não exclui a competência suplementar dos Municípios (CF, art. 30, II), de tal modo que resta afastada a alegação posta na inicial de que o assunto tratado na lei em exame não é de competência municipal. 

 

Igualmente, o argumento de que a Lei Federal n.º 10.098/2000, 10.671/2003 e 10741/2003 já esgotaram o tema, impossibilitando o exercício da competência suplementar pelo Município de Suzano, não tem como prosperar, porque a iniciativa em análise é perfeitamente afinada aos valores e princípios consagrados em tal legislação.

 

Assim, na espécie, é incensurável a opção do legislador de instituir a colocação de cadeiras de rodas nas portarias dos prédios residenciais, comerciais e similares no Município de Suzano em favor dos idosos e pessoas portadoras de deficiências físicas, tanto sob o ponto de vista formal como, principalmente, material, à medida que, conforme acima visto, o Poder Público tem o dever legal e constitucional de promover a integração e garantir o bem estar (mobilidade) dos idosos e pessoas portadoras de deficiência física, o que se fez nesse caso, com a edição da lei ora censurada.

 

Realmente, a lei editada é geral e abstrata, a distinção nela prevista (tratamento especial aos idosos e pessoas portadoras de deficiência física) é perfeitamente compatível com a isonomia (trata desigualmente os desiguais) e inexiste reserva de iniciativa sobre essa matéria, lembrando-se, no mais, que todos os assuntos de interesse local podem ser disciplinados por lei.

 

Nesse sentido, bem observa BOBBIO (O Positivismo Jurídico –Lições de Filosofia do Direito, Icone Editora, 2006, p. 145) que:

Com referência ao conteúdo das normas jurídicas, é possível fazer uma única afirmação: o direito pode disciplinar todas as condutas humanas possíveis (g.n.), isto é, todos os comportamentos que não são nem necessários, nem impossíveis; e isto precisamente porque o direito é uma técnica social, que serve para influir na conduta humana.

 

Aliás, se vingar a tese contida na inicial de que a lei não pode interferir na esfera de atribuições do Executivo, o princípio da legalidade será posto de lado, inaugurando-se uma realidade que não é compatível com a ordem jurídico-constitucional vigente: o reconhecimento da liberdade do Executivo para agir fora ou além dos limites preestabelecidos por lei, num claro direcionamento ao arbítrio.

Para finalizar, anoto que, no plano da realidade, quem já teve sob os seus cuidados pessoa idosa ou com dificuldade de locomoção bem vai compreender a razoabilidade da iniciativa em comento, que, em última análise, ao garantir a mobilidade, satisfaz plenamente o postulado da dignidade da pessoa humana, um dos pilares do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1.º, III).

 

Nessas circunstâncias, o parecer é pela improcedência da presente ação, sem a confirmação da liminar.

 

                   São Paulo, 21 de julho de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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