Parecer
Autos nº. 0057182-61.2011.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Suzano
Objeto: Lei nº 4.412, de 11 de setembro de 2010, do Município de Suzano
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, da Lei nº 4.412, de 11 setembro de 2010, do Município de Suzano que “disciplina o descarte pela população e o recolhimento e destinação de medicamentos vencidos e a vencer no Município de Suzano, proteção do meio ambiente e a saúde pública”. Projeto de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui serviço e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade, por violação aos artigos 5º; 25; 47, II; e 144 da Constituição do Estado.
Colendo
Órgão Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de
ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por objeto a Lei nº 4.412, de
11 de setembro de 2010, do Município de Suzano, que “disciplina o
descarte pela população e o recolhimento e destinação de medicamentos vencidos
e a vencer no Município de Suzano, proteção do meio ambiente e a saúde
pública”.
Sustenta o
autor, em síntese, que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal
e que isso revela interferência na competência legislativa reservada ao chefe
do poder executivo. Aponta como violados os arts. 5º, 25, 47, II, 111 e 144,
todos da Constituição do Estado.
A Lei teve
a vigência e eficácia suspensas ex nunc,
atendendo-se ao pedido liminar (fls. 22/24).
O
Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo
(fls. 33/34).
A
Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando
que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 114/115).
Este é o
breve resumo do que consta dos autos.
A lei
impugnada tem o seguinte teor:
LEI Nº 4.412,
de 11 de setembro de 2010
Disciplina o
descarte pela população e o recolhimento e destinação de medicamentos vencidos
e a vencer no Município de Suzano, proteção do meio ambiente e a saúde pública.
“Art. 1º - Todo
tipo de medicamento comercializado no Município de Suzano, que se encontra com
o prazo de validade vencido, deve ser depositado pelo usuário em recipientes
previamente instalados nas farmácias e nos postos de a saúde e remetido à
vigilância sanitária para repasse aos fabricantes, aos distribuidores ou aos
importadores, para que estes adotem mentos de destinação final ambientalmente
adequado.
Parágrafo
único – Os medicamentos parcialmente utilizados e dentro do prazo de validade
poderão ser entregues somente aos postos de saúde para eventual reaproveitamento
ou utilização mediante prévia avaliação técnica.
Art. 2º - Os
estabelecimentos que comercializam medicamentos ficam obrigados disponibilizar,
ao público em geral, caixas, coletas de fármacos vencidos no seu interior para
posteriormente remetido ao órgão sanitário do Município.
Art. 3º - O
Poder Executivo Municipal poderá definir e criar entrepostos alternativos para
recebimento dos medicamentos a serem descartados pelo usuário até que sejam
estruturados mecanismos operacionais para a coleta, transporte e armazenamento
destes produtos, tudo como forma de evitar danos ao meio ambiente, à saúde
pública.
Art. 4º -
caberá ao Município de Suzano esclarecer à população a importância e a
necessidade do usuário a desfazer do medicamento com data de validade vencida e
a vencer como forma de prevenção a danos ao meio ambiente e saúde pública.
Art. 5º - As
despesas decorrentes da execução da campanha correção por conta orçamentária
própria, suplementadas, se necessário.
Art. 6º -
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Em que pesem
os elevados propósitos que inspiraram o nobre Vereador Emerson Taboada de Faria,
autor do projeto da lei em análise (fls. 21), reputamos procedentes os
argumentos da inicial.
Referida
lei é, de fato, verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São
Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais
dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de
outras atribuições previstas nesta Constituição:
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a
direção superior da administração estadual;
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites
da competência do Executivo;
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política,
legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por lei orgânica,
atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.”
Nos entes políticos
da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da
tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da
legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas
genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de
gestão.
Essa
repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do
princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado
por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão
ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A tarefa de
administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de
planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange,
efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.
Por
intermédio da lei em questão, a Câmara institui um serviço público e cria
obrigações, onerando a Administração. Embora elogiável a preocupação do
Legislativo local com a saúde pública e com o meio ambiente, no que tange à
questão do recolhimento e destinação de medicamentos vencidos e a vencer no
Município de Suzano, a iniciativa não tem como prosperar na ordem
constitucional vigente, uma vez que a norma diz respeito a atos inerentes à
função executiva.
Com efeito,
a criação de programas e a forma de prestação de serviços públicos são matérias
de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a
responsabilidade, perante a sociedade, pela eficiência da Administração.
Sendo
assim, a iniciativa do processo legislativo para criação de políticas públicas
e funcionamento de serviços municipais é privativa do Poder Executivo, pois,
como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da
iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor
direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse
preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).
Por esse
motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º,
II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa
privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública
e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou
indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos
princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo
144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o Supremo Tribunal
Federal:
“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como
delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República -
inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação
das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à
incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ
150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU
nº 227, p. 45684).
Se a regra
é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os
Municípios.
As normas
de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do
princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico
que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências
e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como
no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de
iniciativa.
Sobre isso,
ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do
Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá
ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que
sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o
Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas
funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça”
(Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).
Ademais, se
a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação
dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a
ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria
dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido
no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o
Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais,
dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o
governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente
exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira,
em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, pp. 99-100).
Daí porque
o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da
conveniência e da oportunidade de criar o serviço em questão e fixar as regras
para sua operacionalização. Fazendo-o, ofendeu claramente o princípio da
separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da
iniciativa reservada do Executivo para desencadear o processo legislativo
correspondente (artigo 24, § 2º, 2, c.c. artigo 47, XVIII, da mesma Carta).
Em casos
semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a
interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações
concretas a cargo da Administração, destacando-se:
“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que
impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a
iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são
atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende
intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções
que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca
Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês.
Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).
Nota-se,
por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte,
colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição
Bandeirante.
Sob esse
aspecto, é de se notar que o descarte pela população e o recolhimento e
destinação de medicamentos vencidos e a vencer no Município de Suzano gera
despesa para o Município que não está coberta pela lei orçamentária, o que se
incompatibiliza com referidas regras constitucionais.
Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade
de leis municipais que infrigem esses comandos:
LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA
PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS
NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO
DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O
INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA
ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).
Diante do
exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta,
declarando-se a
inconstitucionalidade da Lei nº 4.412, de 11 de setembro de 2010, do Município
de Suzano.
São Paulo, 12 de julho de 2010.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
-Jurídico–
vlcb