Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0077486-81.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Objeto: Lei Complementar n. 0359, de 08 de março de 2007, do Município de Catanduva

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, da Lei Complementar n. 0359, de 08 de março de 2007. Iniciativa parlamentar. Violação ao princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47 II, e 144, da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo por objeto a Lei Complementar n. 0359, de 08 de março de 2007, de autoria do Vereador Marcos Crippa.

Sustenta o autor que a lei impugnada foi concebida na Câmara Municipal. Haveria, nesse aspecto, violação ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

A liminar foi indeferida, por não se vislumbrar verossimilhança ou fumaça do bom direito, sobretudo porque a lei impugnada está em vigor desde 2007 (fls. 20).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da intervenção (fls. 29/31). Informações da Câmara Municipal a fls. 33/39.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Remarque-se que a Lei Complementar n. 355, de 26 de dezembro de 2006, institui o “PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO, A LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO E A LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO DO MUNICÍPIO DE CATANDUVA E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”.  Reza o art. 192 de mencionada Lei Complementar:

“Art. 192.  São considerados empreendimentos de impacto as seguintes atividades, independente da área construída ou metragem do terreno:

I - centrais e terminais de carga e transporte;

II - shopping centers;

III - centrais de abastecimento;

IV - terminais de transporte;

V · clubes; salões de festas e assemelhados;

VI - postos de serviço com venda de combustível;

VII - depósitos de gás liquefeito de petróleo (GLP);

VIII - casas de diversões noturnos, tais como, bares, casas de dança e similares com música ao vivo;

IX . oficinas mecânicas;

x - casas de prostituição;

XI - hospitais e afins:

XII – supermercados, hipermercados e assemelhados”.

Por sua vez, o texto legislativo guerreado dispõe “sobre a nova redação do inciso X do art. 192 e acrescenta o item “observações” no TítuloVI das Disposições Finais e Transitórias da Lei Complementar n. 355, de 26 de dezembro de 2006”. Afirma-se:

“Art. 1 - O inciso X do art. 192 da lei Complementar n. 0355, de 26 de dezembro de 2.006, que passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 192 - ( ••• )

(...)

X - casas de prostituição, motéis, auto-cines e drive-in."

Art. 2 - Nas Disposições Finais e Transitórias, Título VI, em "Observações", fica acrescentado:

"Observações:

(...)

12. Os motéis, auto-cines, drive-in e casas de prostituição devem respeitar uma distância mínima de 4 kilômetros de áreas residenciais, templos religiosos, loteamentos, chácaras, hospitais, casas de saúde e estabelecimentos de ensino, sem prejuízo da distância mínima de 10 kilômetros dos principais trevos de acesso ao município, pelas rodovias e estradas municipais, estaduais, vicinais e secundárias".

A Lei questionada é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional. Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

Ademais, a Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de planejamento em matéria urbanística.

O art.180, caput, da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

O art.181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no §1º do art.182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art.144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Anote-se, finalmente, que o art.182, caput, da Constituição Federal disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Recorde-se também que o inciso VIII do art.30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional; (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município.

A sistemática constitucional, quanto à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo, torna patente que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

Qualquer modificação legislativa que envolva a ocupação e uso do solo deve ser realizada dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais. Não se admite, nesse quadro, a ordenação individualizada e dissociada do contexto da utilização de todo o solo urbano.

Assim não fosse, ficaria sem valor algum todo o trabalho previamente realizado para fins de elaboração e aprovação da Lei do Plano Diretor e de Uso e Ocupação do Solo Urbano. Qualquer iniciativa parlamentar poderia – como se verificou no caso em exame – levar à alteração legislativa casuísta.

Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota HELY LOPES MEIRELLES que ”Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população”. (Direito Municipal Brasileiro, p.393 e 395).

Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota JOSÉ AFONSO DA SILVA que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento, que “recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico, 4ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.251).

Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando TOSHIO MUKAI, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” (Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p.29).

Deste modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo oriundo do Legislativo municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística, acresce “casas de prostituição, motéis, auto-cines e drive-in” ao item X do art. 192, da Lei Complementar n. 355, de 26 de dezembro de 2006, institui o “PLANO DIRETOR PARTICIPATIVO, A LEI DE USO E OCUPAÇÃO DO SOLO E A LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO DO MUNICÍPIO DE CATANDUVA E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”,  além de fixar que “Os motéis, auto-cines, drive-in e casas de prostituição devem respeitar uma distância mínima de 4 kilômetros de áreas residenciais, templos religiosos, loteamentos, chácaras, hospitais, casas de saúde e estabelecimentos de ensino, sem prejuízo da distância mínima de 10 kilômetros dos principais trevos de acesso ao município, pelas rodovias e estradas municipais, estaduais, vicinais e secundárias". Fere-se, destarete, o disposto nos art.180 caput e inciso II, art.181 caput e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art.144 da Constituição Estadual, o art.182 caput e §1º, e o art.30, inciso VIII da Constituição Federal.

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 0359, de 08 de março de 2007, do Município de Catanduva.

São Paulo, 13 de setembro de 2011.

       

 

Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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