Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 0082039-74.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Jumirim

Objeto: Inconstitucionalidade do inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal de Jumirim, o qual afirma competir privativamente à Câmara Municipal aprovar convênios, acordos ou qualquer outro instrumento celebrado pelo Município com a União, o Estado, outra pessoa jurídica de direito público interno ou entidades assistências e culturais;

 

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade do inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal de Jumirim, o qual afirma competir privativamente à Câmara Municipal aprovar convênios, acordos ou qualquer outro instrumento celebrado pelo Município com a União, o Estado, outra pessoa jurídica de direito público interno ou entidades assistências e culturais.

2.      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Intromissão do Poder Legislativo na esfera administrativa, própria do Poder Executivo. A celebração de convênios e demais instrumentos não está subordinada à prévia manifestação do Poder Legislativo, e por isso o dispositivo impugnado configura ofensa clara ao princípio da separação dos poderes.

3.      Parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal de Jumirim.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Jumirim na qual se alega a inconstitucionalidade do inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal da localidade, o qual afirma competir privativamente à Câmara Municipal aprovar convênios, acordos ou qualquer outro instrumento celebrado pelo Município com a União, o Estado, outra pessoa jurídica de direito público interno ou entidades assistências e culturais.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado violou a regra da separação de poderes, por interferir diretamente na gestão das atividades administrativas do Município. Aponta para a violação dos arts. 5º, 111, incisos II e XIV, e 144 da Constituição Paulista.

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo impugnado (fls. 70/72).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 82/93).

Foi deferida a liminar em sede de agravo regimental, determinando-se a suspensão do dispositivo legal impugnado (fls. 75/78).

É o relato do essencial.

A presente ação direta insurge-se contra o inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal de Jumirim, o qual afirma competir privativamente à Câmara Municipal aprovar convênios, acordos ou qualquer outro instrumento celebrado pelo Município com a União, o Estado, outra pessoa jurídica de direito público interno ou entidades assistências e culturais.

De fato, a análise do inciso referido mostra claramente intromissão do Poder Legislativo na esfera administrativa, própria do Poder Executivo. A celebração de convênios ou consórcios administrativos não está subordinada à prévia manifestação do Poder Legislativo, e por isso o dispositivo impugnado configura ofensa clara ao princípio da separação dos poderes, inscrito no artigo 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

 A Constituição Federal de 1967, no seu art. 16, § 4º, estabelecia que os Municípios poderão celebrar convênios para a realização de obra ou exploração de serviços públicos de interesse comum, cuja execução ficará dependendo de aprovação das respectivas Câmaras Municipais. A partir daí, o instituto dos convênios e dos consórcios municipais integrou-se definitivamente ao sistema constitucional e administrativo brasileiro (José Cretella Júnior, Direito Administrativo Municipal, Forense, Rio de Janeiro, 1981, pp. 87/88).

 Na Carta de 1969 nada constou a respeito, o que motivou inúmeras discussões sobre a constitucionalidade ou não de preceitos que impunham a aprovação do Legislativo para a celebração de acordos ou convênios com outras entidades federativas, ou de sua ratificação ou referendo, quando negociados sem a aprovação preliminar, por motivo de urgência.

 Como se sabe, os convênios são atos bilaterais por meio dos quais as pessoas jurídicas de direito público ajustam a conjugação de esforços para a consecução de objetivos comuns, facultada a denúncia unilateral a qualquer tempo (cf. Carlos Ari Sundfeld, Licitação e Contrato Administrativo, 2ª ed., p. 198). Nesse contexto, os convênios, assim como os contratos administrativos, caracterizam-se como atos ordinários de gestão, para a prática dos quais o administrador independe de autorização legislativa. De fato, por eles a Administração exerce sua função constitucional típica — o poder-dever de praticar atos administrativos para a realização do bem comum —, que é de sua competência exclusiva. A ingerência do Legislativo no exercício dessa competência configuraria subordinação de um Poder ao outro, o que contraria a ideia da independência e harmonia entre os Poderes. Já os consórcios administrativos “são acordos firmados entre entidades estatais, autárquicas ou paraestatais, sempre da mesma espécie, para realização de objetivos de interesse comum dos partícipes. O que caracteriza o consórcio e o distingue do convênio é que este é celebrado entre pessoas jurídicas de espécies diferentes e aquele só o é entre entidades da mesma espécie” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro,  9ª ed., Malheiros Editores, pp. 295/296).

 Descabe ao Legislativo tomar a iniciativa de, por via de lei, interferir na administração ordinária do Município, em face do modelo adotado pela Constituição Federal para a relação entre os Poderes.  Não há, nesse modelo, previsão de autorização legislativa para que o Executivo pratique seus atos bilaterais de administração ordinária, que estão submetidos apenas ao controle externo da prestação anual de contas. E essa regra se aplica tanto aos Estados-membros como aos Municípios, uma vez que ela se insere nos fundamentos do princípio da separação entre os Poderes, que são de observância obrigatória por todos os entes federados.

Há diversas decisões do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:

“Separação e independência dos poderes: submissão de convênios firmados pelo Poder Executivo à prévia aprovação ou, em caso de urgência, ao referendo de Assembléia Legislativa: inconstitucionalidade de norma constitucional que a prescreve; inexistência de solução assimilável no regime de poderes da Constituição Federal, que substantiva o modelo positivo brasileiro do princípio da separação e independência dos poderes, que se impõe aos Estados-membros: reexame da matéria, que leva à reafirmação da jurisprudência do Tribunal.” (STF, ADIN nº 165-5, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Informativo nº 85, de 01.10.97).

Se a regra é obrigatória para aos Estados-membros, com maior razão também o é para os Municípios. De fato, se de um lado a Constituição reconheceu a autonomia desses entes federados para se auto organizarem por leis orgânicas, de outro é inegável que os vinculou aos princípios constitucionais, dentre os quais se destaca o da separação entre os Poderes. 

 Cabe observar que a Constituição Estadual prevê a necessidade de autorização ou aprovação da Assembleia no caso de convênios “de que resultem para o Estado encargos não previstos na lei orçamentária” (art. 20, inc. XIX).  O Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade de artigo de teor semelhante, na Lei Orgânica do Distrito Federal[1]; no entanto, no caso presente nem é preciso enfrentar tal questão, uma vez que o dispositivo aqui impugnado não fez a mesma ressalva, pretendendo estabelecer a obrigatoriedade de aprovação da Câmara de Vereadores em todo e qualquer convênio.

Com efeito, o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso XIX do art. 12 da Lei Orgânica Municipal de Jumirim, o qual afirma competir privativamente à Câmara Municipal aprovar convênios, acordos ou qualquer outro instrumento celebrado pelo Município com a União, o Estado, outra pessoa jurídica de direito público interno ou entidades assistências e culturais.

 

São Paulo, 23 de novembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

ef

 

 

 

 

 



[1] Adi 1.166-9-DF, rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 05/9/02, cuja decisão ficou assim ementada:  “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 60, XXVI, da Lei Orgânica do Distrito Federal. Alegada Incompatibilidade com os arts. 18, e 25 a 28, todos da Carta da República. Dispositivo que, ao submeter à Câmara Legislativa distrital a autorização ou aprovação de convênios, acordos ou contratos de que resultem encargos não previstos na lei orçamentária, contraria a separação de poderes, inscrita no art. 2º da Constituição Federal. Precedentes. Ação julgada procedente.”