Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0093509-05.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mairinque

Objeto: Emenda à L.O.M. n. 57/2011

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, da Emenda à L.O.M. n. 57/2011. Iniciativa parlamentar. Violação ao princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47 II, e 144, da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Mairinque, tendo por objeto a Emenda à L.O.M. n. 57/2011, que altera a redação do art. 96 e 98 da Lei Orgânica Municipal.

Sustenta o autor que a lei impugnada foi concebida na Câmara Municipal. Haveria, nesse aspecto, violação ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

A Lei não teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, por não se vislumbrar verossimilhança ou fumaça do bom direito a justificar o deferimento da liminar (fls. 17).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

No mérito, deflui dos autos que a Lei em análise decorre de projeto de autoria parlamentar.

Segundo se nota do texto guerreado, normatiza-se que “o município, preferentemente à venda e doação de seus bens imóveis, outorgará concessão de direito real de uso mediante prévia autorização legislativa e concorrência. A concorrência poderá ser dispensada por lei, quando o uso de destinar a concessionárias de serviço público e a entidades assistenciais, vedada a autorização legislativa genérica para a concessão administrativa”(nova redação do art. 96, § 1º, da Lei Orgânica de Mairinque). Também se estabelece que “a concessão administrativa de bens públicos de uso especial e dominial dependerá de lei específica e concorrência, e far-se-á mediante contrato, sob pena de nulidade” (nova redação do art. 98, § 1º, da Lei Orgânica de Mairinque).

Com a devida vênia relativamente aos argumentos apresentados pela Presidência da Câmara Municipal em suas informações, a lei impugnada é inconstitucional.

A razão é objetiva e simples: a lei impugnada veicula, efetivamente, verdadeiras opções que devem ser formuladas pela administração pública local, e não pelo legislativo. Embora contenha aparentemente os atributos do ato normativo, ou seja, abstração, generalidade e impessoalidade, o diploma hostilizado nesta ação direta se traduz do ponto de vista prático em ato predominantemente administrativo, embora não chegue a configurar ato administrativo concreto.

Conceder ou não direito real de uso ou concessão administrativa de bens públicos de uso especial e dominial não é matéria de lei, mas sim de ato administrativo a cargo, portanto, da administração pública municipal.

Daí a conclusão de que o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração pública, isso significa invasão de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

Mas não é só.

Pode-se afirmar, ainda, que o ato normativo contraria o princípio da razoabilidade, assentado no art. 111 da Constituição Paulista, e aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Há ofensa a esse princípio quando a lei não supera o denominado “teste de razoabilidade”, indicando (a) sua necessidade, (b) sua adequação, e (c) a existência de proporcionalidade em sentido estrito na opção nela formulada.

No caso concreto há ofensa à razoabilidade, na medida em que: (a) não se verifica a necessidade da norma impugnada, do ponto de vista do interesse público; (b) não há adequação normativa; e (c) as imposições ou restrições provocadas pela lei são excessivas do ponto de vista do interesse geral do Município.

Não há, nesse quadro, necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito na perspectiva da coletividade e do Município como um todo. Caso contrário, reconhece-se a inconstitucionalidade pela violação à razoabilidade.Nesse sentido o posicionamento assente no Col. STF: ADI 2019/MS, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 02/08/2001, Tribunal Pleno, DJ 21-06-2002; ADI 2667 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 19/06/2002, Tribunal Pleno, DJ 12-03-2004; ADI 247/RJ, rel. Min. Ilmar Galvão, rel. p. acórdão Min. Nelson Jobim, j. 17/06/2002 , Tribunal Pleno, DJ 26-03-2004; ADI 2623 MC/ES, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 06/06/2002, Tribunal Pleno, DJ 14-11-2003; ADI 3112/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/05/2007, Tribunal Pleno, DJ 26-10-2007; entre outros.

Ademais, rememore-se que para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Ademais, a Lei questionada é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional.

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Em que pese a relevante intenção da Mesa da Câmara Municipal de Mairinque, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Emenda à L.O.M. n. 57/2011, do Município de Mairinque.

São Paulo, 13 de setembro de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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