Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 0121042-36.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Cravinhos

Objeto: Lei Complementar n. 210, de 20 de abril de 2011 e Lei Complementar n. 116, de 21 de junho de 2002, ambas do Município de Cravinhos

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito. Lei Complementar n. 210, de 20 de abril de 2011 e Lei Complementar n. 116, de 21 de junho de 2002, ambas do Município de Cravinhos, de origem parlamentar, que dispõem sobre a regularização de construções e reformas de imóveis no município.

2) Ofensa ao princípio da separação dos poderes. Atividade própria do Executivo. Vício de iniciativa. Violação do art. 5º da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade verificada.

3) Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Cravinhos, tendo por objeto a Lei Complementar n. 210, de 20 de abril de 2011, de origem parlamentar, que dispõe sobre a regularização de construções e reformas de imóveis no município.

No corpo da inicial o autor faz referência à Lei Complementar n. 116, de 21 de junho de 2002, que padece dos mesmos vícios.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Cuidando-se de lei que dispõe sobre a regularização de construções e reformas de imóveis no município, o autor fundamentou seu pedido inicial em diversos dispositivos legais, da Constituição Federal, da Estadual, bem como da Lei Orgânica do Município.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 98/99).

O Presidente da Câmara Municipal foi noticiado e apresentou informações a partir de fls. 112.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 109/110).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação procede, inclusive em relação à Lei Complementar n. 116, de 21 de junho de 2002, que padece dos mesmos vícios.

Como se sabe, o processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 675).

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República (cf. Alexandre de Moraes, Direito constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641), conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto cunhado na Câmara dos Vereadores, o que se constitui clara ofensa à Constituição do Estado, pois somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que disponham sobre regularização de construções e reformas de imóveis no município.

Invadiu-se claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

São confiadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo funções diferenciadas e independentes, de acordo com a estrutura da organização política da República, inclusive quanto ao município, que é sua parte integrante. Bem por isso a Constituição Federal procurou estabelecer as atribuições do Poder Executivo e do Poder Legislativo, fixando funções adequadas à organização dos poderes, no que foi seguida pela Constituição do Estado de São Paulo.

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, devendo planejar, organizar e dirigir a gestão das coisas públicas.

Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é a sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração.  Por meio da edição de leis, a Câmara ditará ao prefeito as normas gerais da administração, sem chegar, no entanto, à prática administrativa. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro, Malheiros, 14ª. ed., 2006, p. 605).

Aplicado esse raciocínio ao caso em exame, temos que a tarefa de adaptar a legislação sobre o uso e ocupação do solo urbano ao plano físico é privativa do Prefeito, que, no exercício dessa atividade, de natureza tipicamente administrativa, não pode sofrer nenhum tipo de interferência indevida do Legislativo local.

Bem a propósito, ao examinar essa questão, o Plenário desse Egrégio Tribunal de Justiça, em antigo aresto relatado pelo eminente jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, concluiu que:

“... constituem matéria legislativa as regras imperativas, gerais e abstratas que diferenciam as construções de habitações das de comércio e indústria, e, ainda, distinguem as habitações, as casas comerciais e industriais, em diversos tipos, e, a final, prescrevem restrições ao direito de construir, conforme a zona residencial, comercial ou industrial e de forma mais ou  menos rígida, segundo critérios exclusivos ou de predominância. E mais, constituem matéria legislativa as regras imperativas gerais e abstratas que determinam recuos, estabelecem alturas de prédios, normas sobre fachadas e gradis. Enfim, as que estabelecem as regras imperativas gerais e abstratas de zoneamento. Já a especificação de uma via pública, no seu todo ou em parte, se estrita ou prevalentemente residencial é obra administrativa, atividade concreta e específica de caráter casuístico, em função do desenvolvimento local, das exigências dos bairros, das manifestações dos próprios logradouros públicos, em consonância com a fisionomia que assume no seu evolver, suscetível de se modificar por exigências urbanísticas do Município, interesse dos munícipes, só possível de ser bem sentidos pelo Executivo, no seu quotidiano contacto com a vida da cidade, atuando em matéria da sua alçada administrativa, particularizando a lei” (TJSP, Pleno, RT 289/456).

Resumindo o ponto até aqui analisado: o conteúdo da lei impugnada é próprio de ato administrativo, de responsabilidade do Prefeito e, portanto, de sua exclusiva iniciativa. A atividade do Legislativo invade a seara a este reservada e incide em inconstitucionalidade, por ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

Posto isso, o parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 210, de 20 de abril de 2011, e da Lei Complementar n. 116, de 21 de junho de 2002, ambas do Município de Cravinhos .

São Paulo, 20 de setembro de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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