Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n.º 0123905-62.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Objeto de impugnação: parágrafo único do art. 38 da Lei Complementar Municipal n.º 331, de 30 de dezembro de 2010, de São José do Rio Preto.

 

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafo único do art. 38 da Lei Complementar Municipal n.º 331/2010, de São José do Rio Preto, que instituiu a obrigatoriedade de todos os integrantes da Guarda Municipal, a partir de seu Diretor, inclusive, estarem, no exercício de suas funções, fardados, com farda regulamentar completa, insígnias, etc. Dispositivo incluído por emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada. Veto rejeitado. Promulgação pela Presidência da Câmara. Ofensa ao princípio da separação de poderes caracterizada. A Câmara pode emendar os projetos de iniciativa reservada ao Executivo, desde que respeitados os parâmetros constitucionalmente previstos. Emenda que – conquanto guarde relação de pertinência com a matéria legislada – produziu aumento da despesa pública. Inteligência do art. 24, § 5.º, I, da Constituição Estadual. Precedente do STF. Ação procedente.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Cuida-se de ação – movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto – na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade do dispositivo legal em epígrafe, que reza o seguinte:

 

“Art. 38 - .............

 

                   Parágrafo Único – Todos os integrantes da Guarda Municipal, a partir do Diretor da Guarda Municipal, inclusive, deverão no exercício de suas funções, estarem devidamente fardados, com farda regulamentar completa, insígnias, etc.

 

         Segundo consta na inicial, o Prefeito encaminhou projeto de lei complementar à Câmara, que, durante sua tramitação, recebeu emenda parlamentar. Após ser aprovado, o aludido projeto de lei complementar foi remetido ao Prefeito para apreciação, optando este pelo veto do dispositivo incluído por emenda parlamentar.  A matéria retornou à avaliação da Câmara, que rejeitou o veto e o seu Presidente promulgou o dispositivo de lei aprovado. Tal iniciativa, porém, fere o princípio da separação dos poderes, consagrado no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo, à medida que compete ao Executivo decidir a conveniência e oportunidade da prática de ato administrativo. Igualmente, ela também se mostra incompatível com o art. 25 da mencionada Carta Política, ante a criação de despesa sem a correspondente fonte de custeio, e com o art. 63, inciso I, da Constituição Federal, o qual proíbe o aumento de despesa nos projetos de iniciativa reservada.     

         Houve concessão de liminar (fl. 50).

         A Câmara Municipal de São José do Rio Preto prestou informações no prazo legal, aduzindo, em contraposição ao pedido, que: o projeto de lei complementar seguiu os trâmites legais e regimentais; inexiste ilegalidade na exigência de uniformização de todos os integrantes da Guarda Municipal, inclusive ocupantes de cargos de provimento em comissão. Ao final, requer a improcedência da ação.

         O Procurador Geral do Estado foi citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, e, na manifestação ofertada nos autos, defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação da lei impugnada, ausente nesse caso, em que a matéria legislada é exclusivamente local.

                  

         Em resumo, é o que consta nos autos.

        

         Data venia, a ação é procedente.

         É fora de dúvida que o propósito da Câmara, ao aprovar a emenda ora impugnada, foi o de obrigar o Prefeito a fornecer fardamento completo a todos os integrantes da Guarda Municipal, ocupantes de cargos efetivos e em comissão.

         Nesse sentido o parecer do Vereador Sgt. Nelson Ohno (PSB), integrante da Comissão de Justiça e Redação, do qual peço vênia para reproduzir a seguinte passagem, verbis:

 

“O Prefeito argumenta que não caberia para os Cargos em Comissão, de livre nomeação e exoneração do Chefe do Poder Executivo, como os de Diretor Operacional da Guarda Municipal, Diretor da Guarda Municipal e o Corregedor, a obrigatoriedade do uso da farda regulamentar completa, insígnias, etc, pois entende que para esses cargos não necessariamente seriam ocupados por guarda/funcionário de carreira. Ainda acrescenta que, o uso da vestimenta seria de exclusividade a carreira efetiva da Guarda Municipal.

..........................................

Os cargos em comissão citados devem sim, ser obrigatório o uso de vestimenta própria da Guarda Municipal, independentemente de serem ocupados por guarda/funcionário de carreira, pois aquelas pessoas que foram nomeadas pelo Chefe do Poder Executivo para ocuparem esses cargos, se tornaram, após a nomeação, membros da Corporação da Guarda Municipal, assim necessitando do uso da farda para o desempenho das suas funções e também como meio de identificação perante os próprios integrantes da corporação, como uma questão de hierarquia a qual é presente na Guarda Municipal.                

 

         Ocorre que, prima facie, o fornecimento de farda aos integrantes da Guarda Municipal não é matéria típica de lei, mas sim constitui ato de administração, e, dessa forma, o que se pretendeu com a aprovação da emenda parlamentar foi impor ao Prefeito a prática de ato que se insere na órbita exclusiva de suas atribuições.

         A Câmara dispõe de função normativa que é consubstanciada na capacidade de editar normas gerais, abstratas e obrigatórias de conduta.

         Assim, em linha de princípio, nada impede a Câmara de legislar sobre a carreira da Guarda Municipal, desde que o projeto de lei seja oriundo do Executivo, por se tratar de matéria de sua iniciativa reservada, mas, no exercício dessa prerrogativa, não pode usurpar competência atinente ao outro Poder.

         Ao Prefeito cabe o fornecimento de fardas aos guardas municipais, no típico exercício de função administrativa, e para tanto não precisa de nenhuma autorização especial da Câmara, bastando a autorização genérica contida na lei orçamentária anual para a aquisição do fardamento.

         Daí que impor ao Prefeito o fornecimento de fardas aos ocupantes de cargos em comissão, por meio de lei, significa na prática subordinar a referida autoridade executiva à vontade da Câmara, olvidando-se, porém, de que entre os poderes locais não existe subordinação e hierarquia, mas sim independência e harmonia, e cada qual deve observar rigorosamente as competências que lhes foram outorgadas pela Constituição. 

         Não bastasse interferir na práxis administrativa, a Câmara excedeu os limites da prerrogativa de emendar os projetos de iniciativa reservada ao Executivo, visto que, nesse caso, a Constituição em vigor proíbe a aprovação de emendas que acarretem o aumento da despesa (CF, art. 24, § 5.º, I).

         Acerca desse assunto, José Afonso da Silva ensina que,

 

“O direito de propor emendas é atribuído aos membros ou órgãos internos do Congresso Nacional. São legitimados para apresentar emendas: a) qualquer membro da Câmara dos Deputados ou do Senado; b) qualquer comissão permanente de ambas as Casas do Congresso.

..............................

A Constituição vigente é menos restritiva ao direito parlamentar de propor emendas a projetos de iniciativa reservada. Vimos antes (Cap. III, § 8,º, ns. 30 e 31) que a regra de reserva da iniciativa de lei do Poder Executivo se fundamenta num critério de oportunidade e de conveniência administrativa, não apenas no princípio de autonomia dos poderes. E a exclusividade é conferida também quanto à regulamentação dos interesses referentes à matéria reservada, claro está que o poder de emenda do Legislativo encontra aí um limite de atuação. Mas a Constituição, prestigiando o legislativo, foi expressa em determinar quais os interesses que não poderiam ser objeto de emendas, conforme consta dos arts. 63 e 166, §§ 3.º e 4.º. O primeiro diz que não será admitido aumento da despesa prevista nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, ressalvado o disposto no art. 166, §§ 3.º e 4.º, nem nos projetos sobre organização dos serviços administrativos da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, dos Tribunais Federais e do Ministério Público. O art. 63 não fala em emenda explicitamente, mas é de emenda que se trata, porque é por esse meio que se poderá aumentar a despesa prevista nos referidos projetos. (Cf. Processo Constitucional de Formação das Leis, Malheiros, São Paulo, 2.ª edição, 2006, pp. 199/200.)

 

         Ora, o fornecimento de fardas aos servidores da Guarda Municipal ocupantes de cargos em comissão, em desacordo com a vontade do Prefeito, que entende ser prescindível tal iniciativa, implica necessariamente a aquisição do fardamento, ou seja, a emenda aprovada gera aumento da despesa pública, desconsiderando a vedação expressa contida no art. 24, § 5.º, inciso I, da Carta Paulista, que, no ponto, reproduz norma constitucional federal que é de observância obrigatória pelos Estados, Distrito Federal e Municípios (CF, art. 63, I).

         Nesse sentido, o colendo Supremo Tribunal Federal já decidiu que:

 

"Processo legislativo da União: observância compulsória pelos Estados de seus princípios básicos, por sua implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos poderes: jurisprudência do Supremo Tribunal. Processo legislativo: emenda de origem parlamentar a projeto de iniciativa reservada a outro poder: inconstitucionalidade, quando da alteração resulte aumento da despesa consequente ao projeto inicial (...)." (ADI 774, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 10-12-1998, Plenário, DJ de 26-2-1999.) No mesmo sentido: ADI 2.113, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 4-3-2009, Plenário, DJE de 21-8-2009; ADI 805, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 17-12-1998, Plenário, DJ de 12-3-1999; ADI 2.079, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 29-4-2004, Plenário, DJ de 18-6-2004; ADI 2.840-QO, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 15-10-2003, PlenárioDJ de 11-6-2004; ADI 816, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 22-8-1996, Plenário, DJ de 27-9-1996.

 

         Em tais circunstâncias, aguarda-se a procedência da ação, com a confirmação da liminar.

                            São Paulo, 6 de outubro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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