Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n.º 0127557-87.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Flora Rica

Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 865, de 26 de maio de 2011, de Flora Rica.

 

 

EMENTA:

1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 865, de 26 de maio de 2011, de Flora Rica, que autoriza o Poder Executivo municipal a firmar acordo de parcelamento de débito existente com a Secretaria de Estado da Educação.

2) Dispositivo incluído por emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada. Veto rejeitado. Promulgação pela Presidência da Câmara. Ofensa ao princípio da separação de poderes caracterizada.

3) A Câmara pode emendar os projetos de iniciativa reservada ao Executivo, desde que respeitados os parâmetros constitucionalmente previstos.

4) Emenda que violou o princípio constitucional da separação de poderes.

5) Ação procedente.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

Cuida-se de ação movida pelo Prefeito Municipal de Flora Rica, na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 865, de 26 de maio de 2011, de Flora Rica, que autoriza o Poder Executivo municipal a firmar acordo de parcelamento de débito existente com a Secretaria de Estado da Educação.

         Segundo consta na inicial, o Prefeito encaminhou projeto de lei à Câmara, que, durante sua tramitação, recebeu emenda parlamentar. Após ser aprovado, o aludido projeto de lei complementar foi remetido ao Prefeito para apreciação, optando este pelo veto do dispositivo incluído por emenda parlamentar.  A matéria retornou à avaliação da Câmara, que rejeitou o veto e o seu Presidente promulgou o dispositivo de lei aprovado. Tal iniciativa, porém, fere o princípio da separação dos poderes, consagrado no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo. Igualmente, ela também se mostra incompatível com o art. 25 da mencionada Carta Política, ante a criação de despesa sem a correspondente fonte de custeio.       

         Houve concessão de liminar (fls. 50/51).

         A Câmara Municipal de Flora Rica prestou informações no prazo legal, aduzindo, em contraposição ao pedido, que o projeto de lei complementar seguiu os trâmites legais e regimentais e que inexiste inconstitucionalidade (fls. 84/86).

         O Procurador Geral do Estado foi citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, e, na manifestação ofertada nos autos (fls. 63/71), manifestou-se pela procedência, sob o argumento de que “a emenda ao projeto de lei engendrou modificação substancial do texto original de modo a encerrar verdadeira emenda substitutiva, alterando-o em sua essência, em manifesta desarmonia com a proposta inicial. Some-se, ainda, que a proposta modificativa resultou em aumento de despesa para os exercícios em que os pagamentos seriam realizados, porquanto a redução da quantidade de parcelas implicou acréscimo do seu valor”.

         Em resumo, é o que consta nos autos.

         A ação é procedente, pois o dispositivo legal impugnado é, de fato, é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.

Ocorre que, de início, verifica-se o vício de iniciativa, com a consequente afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes.

Com efeito, é possível constatar-se a afronta ao art. 5º da Constituição Estadual, pois lei de iniciativa parlamentar não poderia dispor sobre a forma de parcelamento do débito do município junto à Secretaria de Estado de Educação.

Na organização político-administrativa brasileira, o governo municipal apresenta funções divididas. O Prefeito é o responsável pela função administrativa, enquanto que a função básica da Câmara é a legislativa, ou seja, a edição de normas gerais e abstratas de conduta, que devem pautar toda atuação administrativa. 

Como essas atribuições foram preestabelecidas pela Constituição, de modo a prevenir conflitos, qualquer tentativa de um Poder de exercer as atribuições de outro Poder tipifica nítida violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes.

Ao aprovar emenda modificativa dispondo sobre o número de parcelas, bem como alterar substancialmente o valor das referidas parcelas, a Câmara de Vereadores invadiu a esfera de atribuições próprias do Poder Executivo, donde caracterizada a violação do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

Assim, por força da emenda parlamentar, alterou-se o projeto do Executivo, violando-se a regra da iniciativa reservada do Prefeito ao dispor sobre as obrigações orçamentárias do município e estabelecer condutas a serem cumpridas pela Administração Pública.

Como ensina José Afonso da Silva (Processo constitucional de formação das leis, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 202), ao tratar da questão das emendas em projetos de iniciativa reservada, analisando questão análoga, “quando no projeto se fixam padrões de vencimentos ou se reestruturam níveis de vencimentos de funcionários públicos, esses padrões e níveis não podem ser modificados por via de emendas no Legislativo, pois aí se configuram os interesses que a Constituição reservou à competência exclusiva do Executivo como superintendente da coisa pública”.

Portanto, à vista do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º), a Câmara não está autorizada a legislar sobre o referido tema, providência que depende da apresentação de projeto de lei que é de iniciativa reservada ao Prefeito. 

 

Não há dúvida de que a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º da Constituição Paulista.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, alterou as obrigações financeiras da Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Com efeito, o diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

         Em tais circunstâncias, aguarda-se a procedência da ação, com a confirmação da liminar.

                            São Paulo, 11 de outubro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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