Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0130346.59.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Itapecerica da Serra

Objeto: Lei Municipal n. 2.183, de 20 de abril de 2011

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, promovida por Prefeito. Em matéria de denominação de logradouros públicos compete à Câmara de Vereadores a edição de leis genéricas e abstratas, cabendo ao Executivo, observando aquelas, o ato de atribuição de nomes. Violação ao princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47, II, e 144, da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Itapecerica da Serra, tendo por objeto a Lei Municipal n. 2.183, de 20 de abril de 2011, que “denomina Rua Veloso o Logradouro Público que especifica”.

Sustenta o autor que a lei impugnada foi concebida na Câmara Municipal. Haveria, nesse aspecto, violação ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

A liminar foi deferida, por se vislumbrar verossimilhança ou fumaça do bom direito (fls. 38). A Procuradoria-Geral do Estado declinou da intervenção (fls. 50/51). Informações da Câmara Municipal a fls. 45/48.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O ato normativo impugnado tem a seguinte redação:

“Art. 1º Fica denominado "Rua Veloso" o Logradouro Público Municipal, sem denominação anterior oficial, localizado no Bairro do Potuverá, com início na altura do Km 296,520 da Rodovia Régis Bittencourt e término em terras particulares, conforme Croqui anexo, que faz parte integrante desta Lei. Art. 2º As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta de dotação constante do Orçamento em vigor. Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

A Lei questionada é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional. Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

Não há dúvida de que a denominação de logradouros públicos é matéria de interesse local (CF., art. 30, inciso I), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. Cumpre acrescentar não haver, na Constituição, reserva dessa matéria em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.  Contudo, é necessário distinguir as seguintes situações: (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, ou alterações na nomenclatura já existente, caso em que a iniciativa é concorrente, (b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Executivo.

Assim, no exercício de sua função legislativa, a Câmara está autorizada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome poderá ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise. Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.183, de 20 de abril de 2011.

São Paulo, 10 de outubro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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