Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n. 0143972-48.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Ilhabela

Objeto: parágrafo 3º do art. 46 da Lei Orgânica do Município da Estância Balneária de Ilhabela

 

 

Ementa: Secretários Municipais de Ilhabela.  Exigência de curso superior.  Ausência de simetria com o perfil traçado na Constituição Estadual (47, VI; 51; 52; e 53).  Inconstitucionalidade da norma constatada.

 

 

Colendo Órgão Especial:

         Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando o parágrafo 3º do art. 46 da Lei Orgânica do Município da Estância Balneária de Ilhabela, que exige que os cargos de Secretários Municipais sejam ocupados por pessoas portadoras de curso superior completo e habilitada na área de atuação ou correlata.

A liminar foi indeferida (fls. 60).

O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 103/104).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

         Esta é a redação da norma impugnada:

“Os cargos de Secretários Municipais, serão ocupados, obrigatoriamente, por pessoas portadoras de curso superior completo e habilitados, na área de atuação ou correlata.” (sic)

              Em que pesem os elevados propósitos que a inspiraram, a norma impugnada acima transcrita malfere, de fato, os artigos 47, VI, 51, 52 e 53 da Constituição do Estado.  Os parâmetros constitucionais estaduais têm a seguinte redação:

 

“Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição: (...)

VI - nomear e exonerar livremente os Secretários de Estado;

Art. 51 - Os Secretários de Estado serão escolhidos entre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.

Art. 52 - Os Secretários de Estado, auxiliares diretos e da confiança do Governador, serão responsáveis pelos atos que praticarem ou referendarem no exercício do cargo.

Art. 53 - Os Secretários farão declaração pública de bens, no ato da posse e no término do exercício do cargo, e terão os mesmos impedimentos estabelecidos nesta Constituição para os Deputados, enquanto permanecerem em suas funções.”

              Inovou a Lei Orgânica do Município de Ilhabela em seara que não é autorizada a tanto, eis que desbordou da necessária  simetria com os paradigmas federal e estadual. Assim, tanto os ministros de estado como os secretários estaduais são nomeados livremente pelo presidente da República e governador do Estado, respectivamente, sem outros requisitos senão os previstos expressamente nos textos constitucionais.

           Ora, o Município não possui poder constituinte e sua  autonomia para dispor  sobre  todos  os  aspectos relacionados com a organização político-administrativa local não equivale ao “poder constituinte” conferido ao Estado-membro da Federação. Neste sentido, leciona o renomado HELY LOPES MEIRELLES:

         “A autonomia não é poder originário. É prerrogativa política concedida e limitada pela Constituição Federal. Tanto os Estados-membros como os Municípios têm a sua autonomia garantida constitucionalmente, não como um poder de auto-governo decorrente da Soberania Nacional, mas como um direito público subjetivo de organizar o seu governo e prover a sua administração, nos limites que a Lei Maior lhes traça”(Direito Municipal Brasileiro, ed. Malheiros, 9ª edição, p.84).

         No mesmo sentido, pontifica PINTO FERREIRA: “fala-se frequentemente em Constituição municipal e constituinte municipal. Porém, os municípios não estão investidos de um poder constituinte nem têm Constituições, mas sim leis orgânicas” (Comentários à Constituição Brasileira, ed. Saraiva,    vol., p.267).

         Desta forma, apenas os Estados-membros da Federação foram investidos de “poder constituinte decorrente”, significando que, no exercício de tal poder, respeitando os princípios e os balizamentos constitucionais da Lei Fundamental, puderam estabelecer as bases da organização de seus poderes, de seus órgãos, de sua estrutura político-administrativa. Em tal sentido, cada Assembleia Legislativa atuou (cf. artigo 11, caput, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), não apenas como órgão do Poder Legislativo no exercício de suas funções normais e precípuas, mas investida de um poder maior que lhe conferiu, nos limites da  Carta Magna, a liberdade de construir essas bases e essa estrutura.

Aos Municípios não foi outorgado tal poder.  Regem-se por lei orgânica que, embora seja a mais elevada na hierarquia  das leis locais, provém não de um poder constituinte, mas apenas de um órgão representativo do Poder Legislativo: a Câmara de Vereadores. Por mais relevante que seja, trata-se do exercício de função legislativa, não constituinte, e portanto sujeita aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. A Câmara, ao votar, aprovar e promulgar a lei orgânica, exerce apenas a normal e precípua função legislativa, característica do Poder que representa, em cujo âmbito deve atuar, sem alçar-se a estabelecer, sem respeitar o exercício das também normais e precípuas funções do Poder Executivo, as bases da organização dos poderes municipais, de seus órgãos e de sua estrutura político-administrativa.

Em decorrência, não  se pode equiparar a  Lei  Orgânica à  uma constituição local; haveria, aí,   evidente  erro de perspectiva. Estas são as  considerações  em tema correlato, mas que têm  pertinência com o dos autos,  feitas na ADin 425-TO (Informativo STF 289) pelo Min. Maurício Corrêa:

"(...) o Supremo Tribunal Federal considera as regras básicas de processo legislativo previstas na Constituição Federal como modelos obrigatórios às Constituições Estaduais. Tal entendimento, que igualmente se aplica às Leis Orgânicas dos Municípios, acaba por permitir que no âmbito estadual e municipal haja previsão de medidas provisórias a serem editadas, respectivamente, pelo Governador do Estado ou Prefeito Municipal e analisadas pelo poder Legislativo local, desde que, no primeiro caso, exista previsão expressa na Constituição Estadual e no segundo, previsão nessa e na respectiva Lei Orgânica do Município (...) É tradição nesta Corte aplicar o princípio da simetria ao procedimento legislativo nos Estados-membros, que também enfrentam situações excepcionais a reclamar providências urgentes e relevantes capazes de saná-las, especialmente se considerarmos o fato de que vários deles possuem tamanho, população e economia equiparáveis a diversos países do mundo. 20. Corroborando o entendimento ora sustentado, o professor Uadi Lammêgo Bulos enumera dois argumentos para legitimar a possibilidade de o Chefe do Executivo, no âmbito estadual, municipal e distrital, expedir medidas provisórias. Primeiro, a ausência de vedação no texto constitucional vigente, "diferindo, assim, da ordem constitucional pregressa, que proibia os Estados-Membros de adotarem decretos-lei"; depois, a aplicação compulsória do princípio da simetria, que exige correlação com o modelo federal no processo de formação de leis previsto nas Cartas estaduais. 21. Impende assinalar que são de observância compulsória os dois requisitos - relevância e urgência - impostos à União pelo artigo 62 da Constituição Federal. A respeito do processo legislativo anoto que esta Corte vem decidindo quanto à obrigatoriedade de os Estados-membros observarem as linhas básicas do modelo federal (ADIs 216-PB, Redator p/ o acórdão Celso de Mello, RTJ 146/388; 822-RS, Pertence, RTJ 150/482; 1181-2-TO, de que fui relator, DJ 18/06/97). Essa vinculação deve ser seguida, inclusive, em relação às modificações introduzidas pela EC 32/01, condição de validade do dispositivo estadual desde então. 22. Na hipótese em exame, constata-se que a Constituição do Estado do Tocantins estabelece em seu artigo 25, inciso V, que "o processo legislativo compreende a elaboração de medidas provisórias", e no artigo 27, §§ 3º e 4º, fixa o procedimento.  Cuida-se de fiel reprodução da Carta Federal, segundo o texto vigente à época da prática dos atos, com observância, portanto, dos pressupostos mencionados anteriormente."

O princípio da simetria não diz respeito apenas ao processo legislativo, mas à própria estruturação institucional das unidades federativas.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta para ser declarada a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do art. 46 da Lei Orgânica do Município da Estância Balneária de Ilhabela.

 

São Paulo, 10 de novembro de 2011.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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