Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0149182-80.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Objeto: Inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 9.076, de 03 de outubro de 2003, de São José do Rio Preto

 

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 9.076, de 03 de outubro de 2003, de São José do Rio Preto, que “veda o corte de fornecimento de água por inadimplência para consumidores de renda inferior a três salários mínimos”.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Ofensa do princípio da razoabilidade (art. 111 da Constituição Paulista).

4)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

5)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como alvo a Lei Municipal nº 9.076, de 03 de outubro de 2003, de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “veda o corte de fornecimento de água por inadimplência para consumidores de renda inferior a três salários mínimos”.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.

Foi indeferido o pedido de medida liminar (fls. 67).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 72 e ss).

É o relato do essencial.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, para que avalie a necessidade de realizar defesa do ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição do Estado.

Quanto ao mérito, a ação deverá ser julgada procedente.

A Lei Municipal nº 9.076, de 03 de outubro de 2003, de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “veda o corte de fornecimento de água por inadimplência para consumidores de renda inferior a três salários mínimos”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. É vedado ao Serviço Municipal Autônomo de Água e Esgoto (SEMAE) de São José do Rio Preto, a operação de corte no fornecimento de água, por inadimplemento, para consumidores que tenham renda familiar inferior a 3 (três) salários mínimos mensais, desde que avaliado por assistente social dos quadros funcionais da autarquia ou Prefeitura Municipal.

Parágrafo único. Aos consumidores enquadrados na renda que se refere este artigo, será aberta oportunidade para formulação de pedido de parcelamento, em até 24 meses, sem prejuízo do pagamento do consumo do mês.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

A análise da constitucionalidade ou não do ato normativo impugnado deve ser feito à luz de disposições assentadas na Constituição Estadual, e não na Constituição da República ou na legislação infraconstitucional. Exclusivamente aquela, como se sabe, serve como parâmetro de controle para o processo objetivo perante o Tribunal de Justiça do Estado.

Ocioso dizer que essa limitação à cognição do Tribunal de Justiça em sede de ação direta de inconstitucionalidade foi claramente assentada pelo Col. STF quando do julgamento da ADI 347, em 20/09/2006, rel. Ministro Joaquim Barbosa, que reconheceu parcialmente a inconstitucionalidade do art. 74, XI, da Constituição Paulista.

Essa observação nos parece importante.

Note-se que ao indeferir a liminar pleiteada pelo Senhor Prefeito Municipal, assentou o Desembargador Relator que “o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor não permite, da mesma forma, que os serviços públicos essenciais, como o fornecimento de água, sejam interrompidos” (fls. 67).

Entretanto, com a devida vênia, o que se mostra fundamental para averiguar-se a ocorrência ou não de inconstitucionalidade é, exclusivamente, o confronto entre o ato normativo impugnado e a Constituição do Estado de São Paulo.

O problema não está, portanto, na proteção do consumidor que, como lembrou o Desembargador Relator ao indeferir a liminar, decorre diretamente do art. 22 da Lei nº 8.078/90. Este dispositivo já assenta claramente o caráter contínuo e, consequentemente, a vedação à interrupção de serviços essenciais por falta de pagamento.

A dúvida está em saber se pode o Poder Legislativo do Município, por força de iniciativa própria, regulamentar aspectos inerentes à gestão de serviço prestado pelo Poder Executivo, determinando medidas que configuram preponderantemente atuação administrativa.

A atenta leitura do ato normativo impugnado revela que nele estão assentadas três diretrizes distintas, explícitas e implícitas:

(a) primeiro, a vedação para que a autarquia municipal encarregada dos serviços de fornecimento de água realize corte em razão de inadimplemento, se o consumidor tem renda familiar inferior a três salários mínimos;

(b) segundo, a autorização para que o corte de fornecimento ocorra, nessa mesma situação, se o consumidor tiver renda superior a três salários mínimos;

(c) e por último, a autorização para que ocorra o parcelamento de tais débitos.

Percebe-se, portanto, que a pretexto de proteger consumidores de por ela compreendidos como pessoas de baixa renda (abaixo de três salários mínimos por mês), a lei acaba por prejudicar outros (aqueles que têm renda acima desse valor).

Não bastasse isso, a lei estabelece diretriz governamental, consistente na autorização para parcelamento de dívidas em até vinte e quatro meses.

Ora, deliberar a respeito de como serão realizadas as cobranças relativas aos preços públicos, ou se será adequado autorizar o parcelamento de dívidas, são medidas que cabem à gestão do Município e, portanto, ao Poder Executivo.

Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e concretização.

Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Mas não é só.

Pretendendo realizar a proteção dos consumidores, o legislador municipal violou o princípio da razoabilidade, que está assentado no art. 111 da Constituição Paulista, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste” de razoabilidade, vale dizer, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública e dos destinatários da norma); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar, ou fundados em critérios equivocados).

Nesse contexto, é indispensável que em juízo de ponderação entre os benefícios obtidos e os sacrifícios impostos pela disposição normativa, não se mostre ela excessiva, abusiva, ou capaz de provocar resultados e efeitos contrários aos interesses que pretende preservar.

Caso contrário, reconhece-se a inconstitucionalidade pela violação à razoabilidade.

Nesse sentido o posicionamento assente no Col. STF: ADI 2019/MS, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 02/08/2001, Tribunal Pleno, DJ 21-06-2002; ADI 2667 MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 19/06/2002, Tribunal Pleno, DJ 12-03-2004; ADI 247/RJ, rel. Min. Ilmar Galvão, rel. p. acórdão Min. Nelson Jobim, j. 17/06/2002 , Tribunal Pleno, DJ 26-03-2004; ADI 2623 MC/ES, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 06/06/2002, Tribunal Pleno, DJ 14-11-2003; ADI 3112/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 02/05/2007, Tribunal Pleno, DJ 26-10-2007; entre outros.

A lei impugnada na ação direta em exame não passa pelo teste de razoabilidade, visto que:

(a) é de discutível necessidade: como bem lembrou o Desembargador Relator, ao indeferir a liminar, o art. 22 do Código de Defesa do Consumidor já impõe a prestação contínua de serviços essenciais, vedando, portanto, sua interrupção como mecanismo de cobrança;

(b) é inadequada: pois a pretexto de proteger consumidores prejudica, indevidamente, boa parte deles, ao deixar implícita a possibilidade de corte de fornecimento quanto a consumidores que tenham renda mensal familiar acima de três salários mínimos;

(c) peca pela falta de proporcionalidade em sentido estrito: o parâmetro adotado na lei – três salários mínimos – não se mostra adequado, pois é possível imaginar, com facilidade, situações em que o consumidor tenha renda familiar superior a esse montante e, mesmo assim, o corte do fornecimento seja até mais prejudicial. Imagine-se v.g.: o corte de fornecimento em uma clínica de idosos, ou em entidades com atuação específica na área da saúde, embora particulares; ou então o corte de fornecimento de água para família com renda superior àquele parâmetro (três salários mínimos), mas em cuja residência viva pessoa de saúde extremamente debilitada, com cuidados médicos ininterruptos em razão, inclusive, de idade avançada (o sistema denominado “home care”); etc.

Cumpre lembrar que embora o princípio da razoabilidade não tenha sido invocado na inicial, a natureza aberta da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade permite o exame da norma impugnada através de fundamento constitucional não adotado expressamente pelo autor.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Diante de todo o exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 9.076, de 03 de outubro de 2003, de São José do Rio Preto, com fundamento no art. 5º, art. 47, II, XIV, art. 111 e art. 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

São Paulo, 04 de outubro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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