Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0153008-17.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Santa Bárbara d’Oeste

Objeto: inconstitucionalidade da Lei n. 3.294, de 13 de junho de 2011, do Município de Santa Bárbara d’Oeste

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 3.294/11 do Município de Santa Bárbara d’Oeste. Criação do Fundo Municipal de Defesa Civil. Iniciativa parlamentar. Violação da separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Procedência da ação. 1.É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que autoriza à criação do Fundo Municipal de Defesa Civil no Poder Executivo, por violar a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, decorrente do princípio da separação de poderes. 2.Considerando que a instituição de fundos depende de autorização legislativa, e que estes devem ser compreendidos na lei orçamentária anual, cuja iniciativa legislativa pertence ao Chefe do Poder Executivo, resulta incontestável interpretação sistemática conclusiva de que essa reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo se estende à instituição de fundos. 3.Ofensa aos arts. 5º, 174, III, § 4º,1, e 176, IX, da Constituição Estadual. 4. Procedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contestando a Lei n. 3.294, de 13 de junho de 2011, do Município de Santa Bárbara d’Oeste, de iniciativa parlamentar, sob alegação de violação aos arts. 5º, 47, II e XIV e 144, da Constituição Estadual (fls. 02/15). Concedida liminar suspendendo ex nunc a eficácia da lei impugnada (fls. 23/25), a Câmara Municipal prestou informações (fls. 39/41) e a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 34/36).

2.                É o relatório.

3.                Do princípio da separação de poderes (divisão funcional do poder) constante do art. 5º da Constituição Estadual decorrem a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo para criação e extinção de órgãos da Administração Pública (art. 24, § 2º, 1) e a reserva da Administração, consistente na prerrogativa da prática de certos atos pelo Poder Executivo de maneira privativa, como o exercício da direção superior da administração (art. 47, II), a prática dos demais atos de administração nos limites de sua competência (art. 47, XIV) e a disposição, mediante decreto, da organização e funcionamento da administração, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos (art. 47, XIX, a). Tais disposições são aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista.

4.                A lei contestada, de iniciativa parlamentar, autorizou a criação de fundo. De acordo com o art. 71 da Lei n. 4.320/64, “constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”. A instituição de fundo depende de autorização legislativa (art. 167, IX, Constituição Federal).

5.                A lei local impugnada viola o princípio da separação de poderes porque agride a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo.

6.                Com efeito, considerando que a instituição de fundos depende de autorização legislativa (art. 176, IX, Constituição Estadual), e que estes devem ser compreendidos na lei orçamentária anual (art. 174, § 4º, 1, Constituição Estadual), cuja iniciativa legislativa pertence ao Chefe do Poder Executivo (art. 174, III, Constituição Estadual), e sendo essas disposições aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Constituição Paulista, resulta incontestável interpretação sistemática conclusiva de que essa reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo se estende à instituição de fundos.

7.                Nem se argumente que se trata de mera autorização. Cuida-se, é verdade, de lei autorizativa, mas, essa qualificação não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade.

8.                Ademais, a autorização legislativa não se confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da reserva de iniciativa.

9.                Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências previstas na lei.

10.              Lição doutrinária abalizada,analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina que:

“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).

11.              A jurisprudência enuncia que “a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (TJRS, ADI 593099377, Rel. Des. Maria Berenice Dias,07-08-2000).

12.              Neste sentido, vem julgando este egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO – INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO - AÇÃO PROCEDENTE.

A lei inquinada originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração Municipal, o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do Poder Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização para desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u., 19-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7, Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).

13.              A argumentação da natureza autorizativa da norma e da inércia na execução da lei não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade. Essa questão foi bem examinada pela Suprema Corte que assim manifestou:

“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).

14.              Com efeito, em matéria administrativa a Administração Pública está vinculada positivamente ao princípio da legalidade (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição Estadual) e, atento à consideração essencial do cancelamento da Súmula 05 do Supremo Tribunal Federal, afigura-se impossível ao Chefe do Poder Executivo (vetando ou não a lei de iniciativa parlamentar que disciplina a matéria) cumpri-la (ou seja, atender à autorização nela contida), pois, a inconstitucionalidade a tisna desde seu nascedouro, e a dimensão do princípio da legalidade (rectius: juridicidade) requer a conformidade dos atos da Administração com o ordenamento jurídico inteiro – inclusive as normas constitucionais.

15.              Opino pela procedência da ação para declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 3.294, de 13 de junho de 2011, do Município de Santa Bárbara d’Oeste por violação aos arts. 5º, 174, III, § 4º, 1, e 176, IX, da Constituição Estadual.

 

                   São Paulo, 10 de outubro de 2011.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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