Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0157946-55.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Objeto: art. 10 da Lei Complementar nº 580, de 29 de junho de 2011, do Município de Catanduva

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto o art. 10 da Lei Complementar nº 580, de 29 de junho de 2011, do Município de Catanduva , que "DISPÕE SOBRE AS MEDIDAS CONCERNENTES À MUNICIPALIZAÇÃO DAS AÇÕES DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA". Emenda de Vereador. Matéria cuja iniciativa é privativa do Prefeito. Ofensa ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º, da CF; art. 5º; art. 47, II; e art. 144, da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo por objeto o art. 10 da Lei Complementar nº 580, de 29 de junho de 2011, daquele município, que DISPÕE SOBRE AS MEDIDAS CONCERNENTES À MUNICIPALIZAÇÃO DAS AÇÕES DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA".

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu partiu do Executivo, mas recebeu Emenda do Legislativo, que fez alterar a redação do impugnado art. 10, reduzindo pela metade a penalidade anteriormente prevista.

O pedido de liminar foi indeferido, porque não se vislumbrou “o necessário fumus boni iuris”, por se tratar de matéria tributária, cuja competência legislativa é concorrente (fls. 37/44).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 57/62), em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls.53/55).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pesem os elevados propósitos que o inspiraram, o art. 10 da Lei Complementar nº 580, de 29 de junho de 2011, do Município de Catanduva, é de fato incompatível com os artigos 5º; 47, II; e 144, da Constituição do Estado, abaixo reproduzidos:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição (...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual’

Art. 144 – Os municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”

É que a Constituição do Estado, em simetria com o modelo Federal, não concede ao parlamentar a iniciativa de leis que disponham sobre a gestão administrativa do município.

Este é o teor do ato normativo impugnado:

“Art. 10 - As penalidades de multa, pela não observância da legislação referente à Vigilância Sanitária, terão valores correspondentes a 50% ao cobrado pelo Governo do Estado de São Paulo."

        Ocorre que o projeto enviado pelo Chefe do Executivo previa o seguinte:

“Art. 10 - As penalidades de multa, pela não observação da legislação referente à Vigilância Sanitária, terão valores idênticos ao cobrado pelo Governo do Estado de São Paulo."

        A Emenda, que resultou no impugnado artigo de Lei Complementar, de iniciativa parlamentar, invade a gestão administrativa, que incumbe ao Poder Executivo, eis que ela se ocupa em regulamentar “as penalidades de multa, pela não observância da legislação referente à Vigilância Sanitária”, atividade típica da Administração Pública, violando, desta forma, o disposto no art. 5º e no art. 47, incs. II e XIV da Constituição Paulista.

         Saliente-se, por oportuno, que o impugnado dispositivo não se refere à matéria tributária, mas à imposição de penalidade de multa, por transgressão às normas de Vigilância Sanitária.

         É o que se depreende pelo que consta da definição de tributo traçada pelo art. 3º do Código Tributário Nacional:

“Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”  g.n.

Ora, a norma impugnada refere-se justamente, repita-se, à imposição de penalidades de multa, por transgressão às normas de Vigilância Sanitária.   Logo, constituindo-se em sanção de ato ilícito, fica afastada a identidade tributária da norma impugnada e consequentemente a competência legislativa concorrente que fundamentou o indeferimento da liminar.

Estabelecida tal premissa, observa-se que é ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

“a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário”  (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

            E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)

            Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 10 da Lei Complementar nº 580, de 29 de junho de 2011, do Município de Catanduva.

São Paulo, 29 de setembro de 2011.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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