Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0170620-65.2011.8.26.0000

Requerente: Centro de Convivência Joana D’Arc

Objeto: Art. 5º da Lei Municipal n. 3.148, de 03 de junho de 2004, do Município de Guarujá

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Centro de Convivência Joana D´Arc, do art. 5º da Lei Municipal n. 3.148, de 03 de junho de 2004, de Guarujá, segundo o qual “Fica concedido salário esposa na importância de R$ 20,00 (vinte reais) que será pago mensalmente aos servidores do Poder Executivo e do Poder Legislativo Municipal que for casado, ocupante de cargo, de emprego permanente ou de emprego em comissão, com exceção dos Secretários Municipais – ES”.

2.      Preliminar. Ilegitimidade do autor, a quem não interessa o provimento almejado. Pertinência temática não demonstrada. O conceito de entidade de classe, para os fins do art. 90, inc. V, da Constituição Paulista, é limitado e reproduz no âmbito estadual as mesmas restrições encontradas no plano federal. Mérito. Inconstitucionalidade reconhecida. A diferenciação feita pelo legislador é possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois, a igualdade pressupõe um juízo de valor, e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Centro de Convivência Joana D’Arc do art. 5º da Lei Municipal n. 3.148, de 03 de junho de 2004, de Guarujá, segundo o qual “Fica concedido salário esposa na importância de R$ 20,00 (vinte reais) que será pago mensalmente aos servidores do Poder Executivo e do Poder Legislativo Municipal que for casado, ocupante de cargo, de emprego permanente ou de emprego em comissão, com exceção dos Secretários Municipais – ES”.

Sustenta o autor que a lei concebida contraria o art. 152, inciso V, da Constituição do Estado de São Paulo, à medida que concebe o benefício somente a homens casados, excluindo as mulheres casadas e todos que vivem em união estável.

O pedido liminar foi indeferido a fls. 39/41.

A Prefeitura Municipal prestou informações, defendendo a constitucionalidade do ato (fls. 55/61).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 51/53).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente, o Centro de Convivência Joana D’Arc não detém legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade. Acerca dessa questão, o Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça já decidiu que: ‘são três os critérios para aferir a legitimidade ativa especial da entidade de classe: a representatividade adequada, mediante homogeneidade de seus membros; o objetivo institucional classista uno; e a pertinência temática que se avalia pelo ajustamento entre os fins a que se propõe a entidade e o conteúdo da lei.’ (ADI 994.09.229236-7, Rel. Des. ARTUR MARQUES, j. em 4/8/2010).

Nota-se que não há pertinência temática entre as finalidades estatutárias da entidade e o conteúdo da norma questionada, não sendo possível aferir de que forma esta atinge os interesses dos representados. Registre-se que “é preciso que haja uma relação lógica entre a questão versada na lei ou ato normativo a ser impugnado e os objetivos sociais da entidade requerente. Vale dizer: a norma contestada deverá repercutir direta ou indiretamente sobre a atividade profissional ou econômica da classe envolvida, ainda que só parte dela seja atingida”(BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2009, p.168). Com efeito, não estará cumprido o requisito da pertinência temática, que se completa com a demonstração genérica de que o provimento jurisdicional almejado atende a interesse dos associados que a entidade se propõe a defender.

O conceito de entidade de classe, para os fins do art. 90, inc. V, da Constituição Paulista, é limitado e reproduz no âmbito estadual as mesmas restrições encontradas no plano federal.

Entidade de classe é aquela constituída para a defesa de uma determinada categoria profissional, “cujo conteúdo seja ‘imediatamente dirigido à idéia de profissão, - entendendo-se classe no sentido não de simples segmento social, de classe social, mas de categoria profissional’” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 742, grifos do original).

O STF estabeleceu que a associação legitimada é aquela que, em essência, representa o interesse comum de determinada categoria (ADI 34/DF, rel. Octavio Galloti, RTJ 128/481), e, desse modo, consolidou o entendimento de que o Constituinte decidiu por uma legitimação limitada, “não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas organizações de classe em autêntica ação popular” (MARTINS, Ives Gandra e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concetrado de constitucionalidade. 3ª. ed., São Paulo: Saraiva, p. 170).

Por isso, a Corte Constitucional nega legitimação às entidades formadas por associados pertencentes a categorias diversas, cujos objetivos, quando individualmente considerados, se mostram contrastantes (ADI – 108/DF, Celso de Mello, DJ 5 Jun. 1992, p. 8426).

Entretanto, se a preliminar for superada, o que se admite somente para argumentar, o art. 5º da Lei Municipal n. 3.148, de 03 de junho de 2004, do Município de Guarujá, apresenta-se incompatível com o Texto Constitucional.

Isso porque a concessão do salário esposa apenas aos servidores do Poder Executivo e do Poder Legislativo Municipal que for casado, ocupante de cargo, de emprego permanente ou de emprego em comissão, com exceção dos Secretários Municipais – ES - significa violação ao princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da Constituição do Estado.

O princípio da igualdade, em sua verdadeira acepção, significa tratar igualmente situações iguais, e de forma diferenciada situações desiguais.

Daí ser possível aduzir que viola o princípio da igualdade tanto o tratamento desigual para situações idênticas, como o tratamento idêntico para situações que são diferenciadas.

Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “o princípio da isonomia preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante averbado insistentemente, cumpre ademais que a diferença do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta” (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3ª ed., 12ª tir., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 35).

Esse é o sentido do princípio da isonomia, salientado por José Afonso da Silva, ao afirmar que “a realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais” (Curso de direito constitucional positivo, 13ª ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 215).

A diferenciação feita pelo legislador é possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois, a igualdade pressupõe um juízo de valor, e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 3ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 400/401).

Além disso, no constitucionalismo moderno “a função de impulso e a natureza dirigente do princípio da igualdade aponta para as leis como um meio de aperfeiçoamento da igualdade através da eliminação das desigualdades fácticas” (J.J. Gomes Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2ª ed., Coimbra editora, 2001, p. 383).

O que o princípio em verdade veda é que a lei vincule uma “consequência a um fato que não justifica tal ligação”, pois, o vício de inconstitucionalidade por violação da isonomia deve incidir quando a norma que promove diferenciações sem que haja “tratamento razoável, equitativo, aos sujeitos envolvidos” (Celso Ribeiro Bastos, Curso de direito constitucional, 18ª ed. São Paulo, Saraiva, 1997, p. 181/182).

A valoração daquilo que constitui o conteúdo jurídico do princípio constitucional da igualdade, ou seja, a vedação de uma “regulação desigual de fatos iguais” (cf. Konrad Hesse, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, tradução da 20ª ed. alemã, por Luís Afonso Heck, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris editor, 1998, p. 330), deve ser realizada caso a caso, com base na razoabilidade e proporcionalidade na análise dos valores envolvidos, pois “não há uma resposta de uma vez para sempre estabelecida” (ob. cit., p. 331).

Em outras palavras, além do aspecto negativo do princípio, como vedação de tratamento desigual a situações e pessoas em condição similar, traz conotação positiva, para conceder ao legislador a missão de, pela elaboração normativa, com parâmetro nos obstáculos e desigualdades reais, equiparar, ou equilibrar situações, materializando efetivamente o conteúdo concreto da isonomia. Pela elaboração normativa o legislador poderá afastar óbices de qualquer ordem que limitem a aproximação efetiva daqueles que se encontram sob a égide do ordenamento jurídico (cf. Paolo Biscaretti Di Ruffia, Diritto constituzionale, XV edizione, Napoli, Jovene, 1989, p. 832).

No caso em exame, o que se verifica é a inexistência de qualquer fundamento concreto e razoável para que se conceda salário esposa na importância de R$ 20,00 (vinte reais) apenas aos servidores.

Correto concluir, assim, que tendo o legislador tratado de forma diversa pessoas que estão em idêntica situação (servidor e servidora, e pessoas que vivam em união estável) findou violado o princípio da isonomia, editando norma inconstitucional.

Diante do exposto,  aguarda-se a procedência desta ação direta de inconstitucionalidade.

 

São Paulo, 09 de novembro de 2011.

       

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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