Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n.º 0178109-56.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Suzano

Objeto de impugnação: Lei Municipal n.º 4.443, de 10 de fevereiro de 2011, de Suzano.

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n.º 4.443/2011, de Suzano, a fixar regras atinentes ao poder de polícia. Preliminar de inépcia da inicial, que contém fundamentação contraditória. Impossibilidade de estabelecer o confronto entre leis para daí identificar a violação do princípio da legalidade (inconstitucionalidade indireta ou mediata). Proposta a extinção prematura deste processo de fiscalização abstrata. No mérito, não foi identificada ofensa à iniciativa reservada, tampouco ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes. As ‘leis de polícia’ são de iniciativa geral ou concorrente. Precedente do TJ/SP. Ação improcedente.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

Cuida-se de ação na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade formal da lei em epígrafe, de origem parlamentar, cuja redação é a seguinte:

 

LEI MUNICIPAL Nº 4.443, DE 10/02/2011

Dispõe sobre a obrigatoriedade da colocação de placas indicativas da profundidade das piscinas e similares, localizadas em clubes, parques náuticos, balneários, entidades e lagos e tanques de pesqueiros, e dá outras providências.

 

Projeto de Lei nº 323/2009

Autoria: Ver. Arnaldo Marin Júnior

VER. José Izaqueu Rangel, Presidente da Câmara Municipal de Suzano, no uso de suas atribuições legais e conforme o disposto no artigo 44, alínea “b” da Lei Orgânica do Município;

Faz saber que a Câmara Municipal de Suzano aprova e ele promulga a seguinte Lei:

  

Art. 1º.  Torna-se obrigatória a colocação de placas indicativas da profundidade das piscinas e similares, localizadas em clubes, parques náuticos, balneários, entidades e lagos e tanques de pesqueiros.

 

Art. 2º.  O não cumprimento do disposto no artigo anterior acarretará a aplicação de multa no valor de 300 U.F.M.s (Unidades Fiscais do Município) por estabelecimento, que será dobrada em caso de reincidência por uma única vez.

 

Art. 3º.  O Executivo regulamentará a presente Lei no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da data de sua publicação.

Art. 4º.  As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

 

Art. 5º.  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

  

Sala da Presidência da Câmara Municipal de Suzano, em 10 de fevereiro de 2011.

 

Vereador José Izaqueu Rangel

Presidente

 

Kazuhiro Mori

Secretário-Diretor Legislativo

 

         Segundo consta na inicial, ao legislar sobre o tema, a Câmara invadiu a esfera de competência do Executivo. A lei impugnada trata de assunto relacionado ao direito privado (civil e comercial), de competência privativa da União (CF, art. 22, I). A Lei Orgânica exige que essa matéria seja disciplinada sob a forma de lei complementar e, por esse aspecto, houve violação do princípio da legalidade. Outro fator que deve ser levado em consideração é o orçamentário, ante a criação de despesas, pela referida lei, sem a indicação da correspondente fonte de custeio. No final, há expressa indicação de contrariedade aos arts. 5.º, 25, 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Houve concessão de liminar (fls. 23/24).

Notificada, a Câmara Municipal de Suzano limitou-se nas informações prestadas a estabelecer a cronologia de votação do projeto de lei naquela Casa (fls. 35/36).

Apesar de citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição Paulista, não houve manifestação do Procurador-Geral do Estado.

Em resumo, é o que consta nos autos.

Preliminarmente, a inicial é inepta, pois traz fundamentos que são incompatíveis entre si, como, por exemplo, a alegação de que a Câmara usurpou competência do Prefeito, no campo da iniciativa reservada de lei, em prejuízo da independência e harmonia entre os Poderes, seguida da afirmação de que a lei ora impugnada tratou de matéria de competência exclusiva da União.   

De fato, se a matéria fosse realmente de competência da União, o que se admite só para argumentar, nem mesmo o Prefeito teria competência para a abertura do processo legislativo.

Assim, pela ordem, como da narração dos fatos não decorre logicamente a conclusão, requer-se a extinção prematura deste processo de fiscalização abstrata.          

Ainda em preliminar, o fato de a lei ora impugnada ser incompatível com a Lei Orgânica Municipal, a qual exige que a disciplina do assunto se dê por meio de lei complementar, é irrelevante no plano do controle normativo abstrato, onde confronto da lei deve ser estabelecido diretamente com a Constituição.

Na espécie, a conclusão de afronta ao princípio da legalidade seria apenas indireta ou mediata.

Esse fundamento, portanto, também deve ser desconsiderado.

No que tange ao mérito, malgrado os relevantes argumentos invocados na respeitável decisão cautelar, a ação é improcedente.

Com efeito, a matéria sobre a qual a Câmara de Suzano legislou não é de direito privado (civil e comercial), excluindo, portanto, a competência da União, mas sim é concernente ao poder de polícia municipal, de iniciativa geral ou concorrente.

A Câmara pode com fundamento no poder de polícia municipal editar lei que condicione, restrinja ou limite o direito de propriedade e o livre exercício de atividade econômica, pelo particular, em prol da coletividade.

Aliás, por força do princípio da legalidade, ninguém poderá fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.

Assim, somente por lei poderia ser estabelecida a obrigação do particular de instalar placas indicativas em locais frequentados pelo público em geral e que sejam dotados de piscinas, lagos ou similares, visando à sua proteção e segurança.

Essa lei, data venia, não é de iniciativa exclusiva do Prefeito, pois não consta do rol previsto no art. 24, § 2.º, 1 a 6, da Constituição do Estado de São Paulo, e, portanto, nenhum empecilho há a que seja disciplinada livremente pela Câmara.

Bem a propósito, no julgamento da ADI 0001862-26.2011.8.26.0000 (Rel. Des. OCTAVIO HELENE), movida pelo Prefeito Municipal de Jundiaí, em face da Lei n.º 7.417, de 23 de março de 2010, daquele Município, que instituiu obrigação ao particular, resultando no dever de o Poder Público fiscalizar o seu cumprimento, o Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça, por votação unânime, rechaçou a alegação de que tal propositura seria incompatível com a iniciativa reservada e, por decorrência, com a própria separação de Poderes.

Como a lógica do raciocínio empregado no aludido precedente é idêntica ao aqui apresentado: as ‘leis de polícia’ não são de iniciativa reservada, nem tipificam invasão da órbita de competência do Executivo, peço vênia para reproduzir abaixo excerto do parecer ministerial ofertado na referida ADI.

“...........................

 a matéria sobre a qual a Câmara legislou, inerente ao poder de polícia ambiental, não é de iniciativa reservada ao Executivo.

Na verdade, as matérias de iniciativa reservada ao Executivo são apenas aquelas expressamente relacionadas no art. 24, § 2.º, 1 a 6, da Constituição do Estado de São Paulo, dentre as quais não se incluem a proteção do meio ambiente e as normas sobre poder de polícia, e, por constituir exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a iniciativa reservada não se presume nem pode decorrer de interpretação extensiva do texto constitucional.

Nesse sentido:

"A Constituição de 1988 admite a iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de direito tributário. A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca (g.n.). O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado." (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001.)

Assim, a exegese que procura extrair dos efeitos reflexos da aplicação dessa norma (a necessidade de fiscalizar o seu cumprimento, inerente ao Poder Público, que conta com estrutura própria para a realização desse mister) a reserva de iniciativa em prol do Executivo não deve subsistir, seja porque contraria postulado básico de hermenêutica, seja porque converte na prática a exceção em regra e vice-versa.

Nessa ordem de ideias, cumpre afastar também o argumento de que essa lei gerou o aumento da despesa pública e, assim, seria incompatível com o art. 25 da Carta Paulista, tendo em vista que o que a Constituição realmente proíbe é o aumento de despesa nos projetos de iniciativa reservada, por meio de emenda (CE, art. 24, § 5.º, 1), e não diz que a Câmara está impedida de apresentar projeto que gere aumento da despesa pública, situação totalmente diversa e que não é contemplada no texto constitucional, visto que, assim fosse, o Legislativo não poderia sequer votar a fixação dos subsídios dos agentes políticos locais ou o aumento dos seus servidores.

Demais, a vedação contida no referido art. 25 (‘Nenhum projeto de lei será sancionado’) é endereçada exclusivamente ao Executivo, detentor do poder de sanção ou veto, nunca ao Legislativo, que pode até autorizar a realização de despesas não previstas no orçamento.”

 

A Constituição de 1988, em substituição à carta outorgada (Constituição semântica), reintroduziu a democracia em nosso país, o que impede a visão centralizadora de que o Executivo pode tudo e o Legislativo nada, olvidando-se de que a função principal desse poder é a normativa, isto é, a capacidade de legislar sobre todos os assuntos de interesse local (CF, art. 30, inciso I) e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (CF, art. 30, inciso II).

A noção de que a Câmara não pode editar regras que interfiram na esfera de atuação do Executivo vem sendo deturpada. Na verdade, como a Administração Pública se submete integralmente ao império da legalidade, mesmo com relação aos atos discricionários, que devem ser praticados nos limites da lei, soa completamente estranha a afirmação de que a lei não pode orientar a atuação do Prefeito.

Em verdade, o que não se admite é a prática de atos administrativos sob a forma de lei, isto é, que a Câmara utilize a lei para administrar o Município (Estado legal), determinando, por exemplo, a desapropriação desse ou daquele bem, a lotação de servidor nesse ou naquele órgão, a contratação de servidor para essa ou aquela função, etc.

Na sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara edita normas gerais, abstratas e obrigatórias de conduta. Ora, a lei que impõe ao particular o dever de instalar placas informativas para garantir a segurança dos frequentadores de locais dotados de piscinas, lagos e similares, reúne todos aqueles atributos, não tipificando, portanto, indevida ingerência na órbita de atribuições do Prefeito.

A tais argumentos acrescento ainda que o dever imposto por essa lei visa à proteção da vida e integridade física dos frequentadores dos referidos locais.

Assim, com a devida vênia, a iniciativa em comento está perfeitamente afinada aos valores e princípios consagrados na Constituição, que, por um lado, protege a vida e a integridade física dos cidadãos, e, por outro lado, garante o direito de propriedade e o livre exercício de atividade econômica, os quais, com fundamento no poder de polícia estatal, poderão sofrer restrições em prol do interesse da coletividade.

Por fim, a fiscalização do cumprimento dessa lei, a cargo do Executivo, não implica a criação, nem aumento da despesa pública, visto que a Prefeitura Municipal de Suzano certamente dispõe de corpo de agentes habilitados a realizar esse trabalho.

Nessa conformidade, requer-se o acolhimento das preliminares suscitadas, com a extinção deste processo sem o enfrentamento do mérito, ou, para o caso de seu afastamento, a improcedência da presente ação, sem a confirmação da liminar, na esteira do precedente jurisprudencial trazido à colação.

                   São Paulo, 3 de novembro de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

krcy