Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo nº 0188872-19.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Jundiaí

Objeto: Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, de Jundiaí

 

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Criação de obrigações à Administração. 2) Lei de iniciativa parlamentar. Violação de reserva de iniciativa do Executivo. Quebra da separação de poderes.   3)  Incompatibilidade vertical com dispositivos da Constituição Paulista (art. 5º; art. 24 § 2º n. 2; art. 47 II e XIV; art. 144). 4) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo por objeto a Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, daquele Município, que "Exige, dos estabelecimentos que oferecem financiamento na compra de produtos, prestar ao consumidor as informações que especifica".

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi totalmente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 38).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 43/45), atendo-se tão somente quanto ao processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls.82/83).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pesem os elevados propósitos que a inspiraram, a Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, de Jundiaí é, de fato, incompatível com os artigos 5º e 47, II e XIX, "a", da Constituição do Estado, abaixo reproduzidos:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

 (...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;"

A Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar, que "Exige, dos estabelecimentos que oferecem financiamento na compra de produtos, prestar ao consumidor as informações que especifica", tem a seguinte redação:

         "Art. 1º - Todas as empresas fornecedoras de produtos ou serviços que trabalham com outorga de crédito o concessão de financiamento ao consumidor, afixarão em suas dependências, junto à entrada do estabelecimento e próximo ao caixa, em local e letras facilmente visíveis, placa, cartaz ou similar contendo os seguintes dizeres: ‘NÃO POSSUÍMOS CREDIÁRIO PRÓPRIO. AS COMPRAS A PRAZO O FINANCIADAS SÃO REALIZADAS POR INTERMÉDIO DA (nome da empresa financiadora), INFORME-SE SOBRE AS CONDIÇÕES DO CONTRATO.’

         Art. 2º - Os fornecedores informarão ao consumidor as formas e condições de pagamento, o preço à vista, o preço final a prazo, o número, a periodicidade e o valor das parcelas, o custo efetivo total (CET) da compra, a taxa de juros mensal e a total e, no ato, entregarão a via do contrato e a nota fiscal a que tem direito o consumidor.

         Art. 3º - O descumprimento desta lei sujeita o infrator às seguintes penalidades, que poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, após o devido processo legal, sem prejuízo das demais sanções de natureza cível, penal e de normas específicas:

         I – multa de R$ 1.000,00 (mil reais), duplicada na reincidência;

         II – suspensão temporária de atividade;

         III – suspensão da licença de funcionamento;

         IV – cassação da licença de funcionamento.

         Art. 4º - O órgão de proteção ao consumidor procederá à fiscalização in loco dos estabelecimentos, ao recebimento das reclamações e denúncias, e à instrução e julgamento dos processos administrativos afetos a esta lei.

         Parágrafo único – O órgão de proteção ao consumidor, no exercício das funções que esta lei lhe atribui, observará o disposto no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei federal nº 8.078, de 11 de setembro de 1990) e do Decreto federal nº 2.181, de 20 de março de 1997.

         Art. 5º - O Executivo regulamentará a presente lei.”

Como visto, a impugnada norma, além de criar a forma de fiscalização (“in loco”), ainda determina qual o órgão da Administração exercerá a atividade de execução e quais as suas atribuições (art. 4º).  Cria, ainda, maiores despesas com a implementação de tal obrigação, o que importa em invasão da seara administrativa.

Note-se, quanto a isto, a necessidade de instaurar processos administrativos, com instrução e julgamento, pelas infrações à lei impugnada, pelo órgão de proteção ao consumidor.

Em realidade, a administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que tem na lei seu mais relevante instrumento[1], participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2]. Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que:

"A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos ou autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (...). A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções. Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2º.). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o Legislativo provê 'in genere', o Executivo 'in specie', a Câmara edita normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administrativas especiais manifestadas em ordens, proibições, concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental (...) Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa privativamente, à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § I, c/c 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal. São, pois, de iniciativa exclusiva do prefeito, como chefe do Executivo local, os projetos de leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entes da Administração Pública Municipal; matéria de organização administrativa e planejamento de execução de obras e serviços públicos; criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração direta, autárquica e fundacional do Município; o regime jurídico e previdenciário dos servidores municipais, fixação e aumento de sua remuneração; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, o orçamento anual e os créditos suplementares e especiais. Os demais projetos competem concorrentemente ao prefeito e à Câmara, na forma regimental.'[3]

Reitere-se que a norma em análise se refere ao regramento de procedimento de órgão da Administração, cuja matéria é da alçada do Poder Executivo, por importar em atos de gestão ordinária da Administração Pública, tratando-se, pois de matéria que a Constituição reservou à iniciativa do Executivo, não podendo o Legislativo tomar a iniciativa a respeito.

A Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, conseqüentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

A par da matéria ora em análise, veja-se o que se extrai de recentíssimo Acórdão proferido pelo Órgão Especial desta E. Corte:

"Há, porém, ingerência na administração do Município, quando determinado, no artigo 4º da Lei vicentina nº 2.369-A/2010, que o seu cumprimento seja fiscalizado pela Secretaria de Comércio, Indústria e Negócios Portuários.   Ao Executivo é que cabe a definição, mediante decreto ou outro ato, do órgão incumbido da fiscalização, que poderá até ser feita por voluntários (inciso II do caput do art. 47, em combinação com o artigo 144, ambos da Constituição Paulista)."  ADIN nº 0421229-05.2010.8.26.0000, Rel. Des. Barreto Fonseca, j. 23 de fevereiro de 2011, fls. 312.

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Por outro lado, a vergastada norma também é colhida pela inconstitucionalidade material, na medida em que o Município invadiu competência legislativa que a Constituição Federal resguardou, concorrentemente, a matéria à União, aos Estados e ao Distrito Federal (art. 24, inc. VIII).

Desta forma, a solução deste processo é a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, do Município de Jundiaí, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 7.457, de 10 de maio de 2010, do Município de Jundiaí.

São Paulo, 28 de março de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

       Subprocurador-Geral de Justiça

        - Jurídico -

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[1] Christian Starck. 'El Concepto de ley en la constitucion alemana', p. 73, CEC, Madrid, 1979.

[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo' do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 12ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 576.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.