Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº. 0188874-86.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Jundiaí

Objeto: Lei nº 7.482 de 09 de junho de 2010

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 7.482 de 09 de junho de 2010, do Município de Jundiaí, que "Veda a eliminação de cães e gatos”. Matéria, contudo, cuja iniciativa é privativa do Prefeito. Ofensa ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º, da CF; art. 5º; art. 24, §2º, ns. 1 e 4; art. 47, II; e art. 144, da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Cuida-se de ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.482 de 09 de junho de 2010, do Município de Jundiaí, que “Veda a eliminação de cães e gatos”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 27/28).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações a respeito do processo legislativo (fls. 41/43).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 34/35).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A declaração de inconstitucionalidade se impõe.

A Lei nº 7.482/10, do Município de Jundiaí, teve origem em projeto de iniciativa de vereador à Câmara Municipal daquela cidade, sendo aprovado pela edilidade, mas depois foi vetado em sua íntegra pelo Poder Executivo local. Mesmo assim, derrubado o veto, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara dos Vereadores.

Inconformado com este proceder, o requerente, em sua petição inicial, afirma ser privativa a competência no tocante à iniciativa legislativa sobre atribuições aos órgãos da administração direta, dispondo sobre a forma da prestação do serviço público. Por isto ventila com a inconstitucionalidade.

Pretende-se o reconhecimento de afronta ao princípio da independência e harmonia dos poderes, pois a lei apresenta vício de iniciativa, sendo seu teor o quanto segue:

 

 

         “Artigo 1º - É vedada a eliminação de cães e gatos por qualquer pessoa, órgão público ou privado, exceto nos casos de eutanásia, a ser realizada por órgão e profissional comprovadamente competentes, em que se tenha constatado óbito iminente devido a acidente para abreviar seu sofrimento, doenças graves, males ou enfermidades infecto-contagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde de pessoas ou de outros animais.

         § 1º. A eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no ‘caput’ deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial, facultado o acesso aos documentos por entidades de proteção dos animais.

         § 2º. Ressalvada a hipótese de doença infecto-contagiosa incurável, que ofereça risco à saúde pública, o animal que se encontre na situação prevista no ‘caput’ deste artigo poderá ser disponibilizado para resgate por entidade de proteção dos animais, mediante assinatura de termo de integral responsabilidade.

         Art. 2º. O descumprimento desta lei implica, em relação a cada animal eliminado, multa de R$ 1.000,00 (um mil reais), corrigida anualmente em 1º. de janeiro pela variação positiva do Índice Nacional de Preços ao Consumidor-INPC (IBGE).

         Parágrafo único. A cada nova ocorrência o valor da multa será multiplicado pelo número de reincidências havidas.”

Da análise da lei em questão constata-se que, de fato, a inconstitucionalidade reside, inicialmente, na ofensa ao artigo 5º, caput da Constituição Estadual Paulista, no tocante ao princípio da independência e harmonia de poderes, diante da invasão, pela conduta do Poder Legislativo local, da competência exclusiva do Poder Executivo.

São confiadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo funções diferenciadas e independentes, de acordo com a estrutura da organização política da República, inclusive quanto ao município, é que sua parte integrante. Bem por isso a Constituição Federal procurou estabelecer as atribuições do Poder Executivo e Poder Legislativo, fixando funções adequadas à organização dos poderes, no que foi seguida pela Constituição do Estado de São Paulo.

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

Por outro lado, disciplinando atividade abstrata e genérica, a Câmara Municipal “não administra o Município, estabelece, apenas, normas de administração” (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 444). Assim o Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente, liberdade para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tais como a estruturação do serviço público, que é atividade reservada do chefe do Poder Executivo.

Na lição de Hely Lopes Meirelles, esta exclusividade é destinada aos temas que disponham sobre “a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da administração pública municipal; a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, fixação e aumento de sua remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e especiais” (ob. cit., p. 530).

Deste modo, no município, tem o prefeito municipal a iniciativa reservada para disciplinar matéria administrativa, como disposto no artigo 24, § 2º, nº 2 da Constituição Paulista, de observância obrigatória dos municípios, como determinado pelo artigo 144 do mesmo diploma legal.

O tema da organização da estrutura administrativa deve ser, necessariamente, de iniciativa do Poder Executivo, que tem interesse preponderante em sua organização. E este exercício independe de qualquer autorização legislativa, pois é inerente à atividade do administrador, voltado para a execução ordinária dos serviços públicos.

A não ser assim adentraria o Poder Legislativo na esfera de atribuições do Poder Executivo, o que não se coaduna com o princípio da harmonia e independência entre os poderes.

No caso em tela pretendeu a Câmara Municipal impor conduta a ser seguida pelo Poder Executivo, vale dizer, regras de procedimento para o sacrifício de cães e gatos e de vedação a tal medida, mesmo em caso de necessidade para o resguardo da saúde pública, interferindo na prestação do serviço público, determinando funções administrativas.

Houve, portanto, limitação à iniciativa reservada do Poder Executivo, que tem o poder discricionário em organizar a estrutura administrativa, pois a imposição de novas funções pressupõe reestruturação dos órgãos municipais.

Ademais, não se admite que o Poder Legislativo local, por lei de sua iniciativa, determine atividade não incluída na lei orçamentária anual, em confronto com o disposto nos artigos 174 e 176, inciso I da Carta Paulista.

Reconhece-se a interferência em atividade tipicamente administrativa pois “em assunto da alçada do Chefe do Executivo, extrapolando de suas atribuições de edição de normas, com evidente invasão de competência, afrontando, por via de conseqüência, o princípio da independência e harmonia dos Poderes” (RTJSP 111/466).

Considerando que o chefe do Poder Executivo deve planejar e planificar sua atividade segundo os objetivos e os recursos previstos nas leis do sistema orçamentário, daí se justificando a iniciativa privativa na elaboração e apresentação de projetos de leis como o caso presente. Não se admite, pois, que a Câmara Municipal possa impor atribuição à secretaria municipal sem a previsão dos recursos para tanto, ofendendo, assim, o artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A lei combatida, ao impor novas tarefas a órgão da administração, despojou o Prefeito de suas funções governamentais, que lhe competem privativamente como condutor dos negócios municipais, a exemplo do que ocorre com o Presidente da República, no plano federal, e com o Governador, no estadual.

Em idêntico precedente, já decidiu este C. Órgão Especial:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada por Prefeito Municipal relativamente a lei municipal, de iniciativa de vereador, que instituiu ‘campanha de controle populacional dos cães e gatos do Município de São Paulo’ e dá outras providências. Alegação de ofensa ao Princípio da Harmonia e Independência dos Poderes, por vício de iniciativa. Procedência do pedido no que se refere aos artigos 5º da Constituição do Estado de São Paulo” (ADIn nº 60.609-0/9, rel. Des. Fonseca Tavares, j. 20.09.00, v.u.).

Conclui-se, portanto, que houve supressão de atribuição reservada do Chefe do Poder Executivo com a consequente imposição de normas que ofende diretamente sua iniciativa legislativa, com a imposição de despesa sem a previsão de receita, aliás, não prevista na lei orçamentária anual, com infringência aos artigos 5º, 24, § 2º, nº 2, 25, 144, 174 e 176, inciso I, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, o parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.482, de 09 de junho de 2010, do Município de Jundiaí.

São Paulo, 17 de outubro de 2011.

 

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

       Subprocurador-Geral de Justiça

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