Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0197311-19.2011.8.26.0000

Autor: Prefeito Municipal de Ubatuba

Objeto de impugnação: Lei n.o 3.354, de 28 de dezembro de 2010, do Município de Ubatuba.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n.º 3.354/2010, do Município de Ubatuba, que alterou a legislação sobre o uso e ocupação do solo urbano, dispondo sobre matéria cuja iniciativa é reservada com exclusividade ao Poder Executivo. Precedentes do TJ/SP. Presença de vício formal de iniciativa. Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º), ante a usurpação, pela Câmara, de prerrogativa própria da função executiva. Alteração legislativa realizada, ademais, sem a oitiva prévia da comunidade, típica expressão da democracia participativa, em descumprimento à exigência constitucional (CE, art. 180, inciso II). Ação procedente.    

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

         Cuida-se de ação – movida pelo Prefeito Municipal de Ubatuba – na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade do ato legislativo em epígrafe, de origem parlamentar, cuja redação é a seguinte:

 

“Art. 1º. Fica alterado o parágrafo 6º, do Art. 46, da Lei nº 711/84, que passa a ter a seguinte redação:

Art. 46.  ........................................................................................

 

§ 6º. Nos lotes e terrenos de esquina, os recuos laterais e o frontal, deverão obedecer ao mínimo da zona em que se situa, independentes de estarem localizados em corredor comercial estabelecido pelo Art. 45.

Art. 2º. Fica acrescido parágrafo 7º, ao Art. 46 da Lei nº 711/84, que passa a figurar com a seguinte redação:

“§ 7º. Nos lotes onde o documento de propriedade, bem como o projeto de parcelamento, não determinar o raio de curvatura, cabe à Prefeitura de Ubatuba, por meio da Secretaria Municipal de Arquitetura e Planejamento Urbano-SMAPU, definir o raio a ser obedecido”

Art. 3º Esta Lei entre em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

         Segundo reza a inicial, a referida lei é incompatível com a vigente Constituição porque a matéria nela disciplinada – de caráter urbanístico – é de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo, nos termos da orientação jurisprudencial assente nesse egrégio Tribunal de Justiça. Ao dispor sobre essa matéria, sem a provocação de quem de direito, a Câmara usurpou competência que é própria do outro Poder que integra o governo municipal, com inegável repercussão na independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º). Conclui, assim, que está bem caracterizada nos autos a violação dos arts. 5.º, 144 e 181 da Constituição do Estado de São Paulo.

         Houve concessão de liminar, com efeito ex tunc, para suspender a eficácia da Lei n.o 3.354/2010 do Município de Ubatuba (fls. 16/21).

         Notificada, a Câmara Municipal de Ubatuba – representada por seu Presidente – prestou informações no prazo regimental, aduzindo, em contraposição ao pedido, que: inexiste reserva de iniciativa em matéria urbanística e, portanto, nesse caso, não houve usurpação de atribuições do Executivo; a lei em questão não acarretou inovação substancial à ordem jurídica, mas sim constituiu mero aprimoramento legislativo com o fito de atender às necessidades locais; o objetivo da alteração foi o de disciplinar o respeito aos recuos mínimos definidos pelo Plano Diretor e, com isso, preservar a segurança dos munícipes e motoristas, que, costumeiramente, sofrem acidentes na esquina, por falta de visibilidade no cruzamento. Com tais argumentos, e valendo-se de precedente do STF, requereu a improcedência da ação.

         Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, o Procurador-Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na defesa da norma impugnada, ausente, porém, neste caso em que a lei versa sobre matéria exclusivamente local.

 

         Em resumo, é o que consta nos autos.

 

         Preliminarmente, nas ações diretas de inconstitucionalidade a causa de pedir é aberta, ou seja, o Tribunal pode declarar a inconstitucionalidade da norma por outro fundamento não cogitado na inicial.

         A alteração das normas urbanísticas, de acordo com o art. 180, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, não prescinde da participação popular, que, à primeira vista, não parece ter sido assegurada neste caso.

         Assim, pela ordem, requer-se a conversão do julgamento em diligência para a juntada de cópia integral do processo legislativo.

         No mérito, a ação deve ser julgada procedente, malgrado a argumentação trazida nas informações da Câmara em defesa da validade da lei ora contestada.

         Com efeito, a norma em questão alterou a lei atinente ao uso e ocupação do solo urbano, cuja disciplina não pode ser aleatória, mas sim integrada às demais normas urbanísticas, desconsiderando-se a reserva de lei sobre a matéria em favor do Executivo e a garantia constitucional da participação popular.

         Bem a propósito, esse egrégio Tribunal de Justiça tem orientação assentada no sentido de que a Câmara não pode dispor livremente sobre esse assunto, com usurpação de prerrogativa do Prefeito, a quem compete o planejamento urbano, e sem assegurar a participação da comunidade, por meio da realização de audiências públicas.

         Nesse sentido:

 

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei complementar de iniciativa de Vereador, dispondo sobre o uso e ocupação do solo ao estabelecer o redirecionamento do uso do solo em apenas uma rua. Inadmissibilidade. Ato normativo que viola os princípios da separação de poderes, da impessoalidade da administração pública e o da iniciativa reservada de lei ao Prefeito Municipal, afrontando artigos das Constituições Federal e Estadual Paulista, Representação procedente. (ADI 994060003613, Rel. Des. CANELLAS DE GODOY, v.u., j. em 30/8/2006)

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei n° 1.912/05 do Município de Ribeirão Preto que "Autoriza o funcionamento de atividades comerciais na Avenida Independência, conforme especifica" Ato normativo de efeitos concretos. Ofensa ao princípio da independência dos Poderes (art. 5o da CE). Ademais, modificação do zoneamento urbano demanda estudo e planejamento prévio de atribuição do Poder Executivo. Iniciativa de lei neste caso exclusiva do Prefeito. Vulneração aos artigos 180, II, e 181, caput, da Carta Paulista. Pedido julgado procedente. (ADI 994060003621, Rel. Des. OSCARLINO MOELLER, v.u., j. em 31/1/2007)

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Ribeirão Preto. Lei Complementar n° 1.973, de 03 de março de 2006, de iniciativa de Vereador, dispondo sobre matéria urbanística, exigente de prévio planejamento. Caracterizada interferência na competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local. Procedência da ação. (ADI 994060029205, Rel. Des. OLIVEIRA SANTOS, v.u., j. em 19/12/2007)

 

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n° 81, de 5 de março de 2007 do Município de São Sebastião. Normas de ordem pública e interesse social reguladoras do uso e ocupação do solo urbano em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, assim como do equilíbrio ambiental - Zonas de Especial Interesse Social - ZEIS. Ausência de prévios estudos técnicos detalhados, planejamento e consulta à população diretamente interessada. Lei de zoneamento corretamente impugnada por dispor de matéria exclusiva de Plano Diretor. Não atendimento às exigências contidas na Lei Federal 10.257/01, art. 50. Violação aos arts. 5o, "caput" e § 1°, 111, 144, 152, 1,11, III, 180, I, II, III e IV, 181, 191, 196 e 297, todos da Constituição Estadual. Ação julgada procedente. (ADI 994070111125, Rel. Designado Des. REIS KUNTZ, m.v., j. em 11/3/2009)

                  

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n° 5.442/2010, de 9 de março de 2010, do Município de Jacareí, deste Estado - Lei que autoriza, observada a Lei n° 4.847/2004, que dispõe sobro Uso, Ocupação e Urbanização do Solo do Município de Jacareí, o uso das áreas excedentes entre o eixo da via e a testada da área construída, para a construção de garagem, sem outorga onerosa, pelos proprietários de imóveis residenciais lindeiros das vias e logradouros públicos - Inobservância da exigência de participação popular em matéria urbanística, assegurada por meio da realização de audiências públicas - Usurpação de prerrogativa do Prefeito Municipal, a quem compete o planejamento urbano  Configuração de ato de gestão administrativa - Violação dos artigos 5o, 144, 180, II, da Constituição do Estado de São Paulo e artigos 29, XII, e 182 da Constituição Federal - Ação procedente - Inconstitucionalidade declarada. (ADI 0534697-44.2010.8.26.0000, rel. Des. JOSE REINALDO, j. em 25/5/2011)

 

         Como se sabe, as alterações das normas e padrões urbanísticos afetam diretamente a vida dos moradores dos centros urbanos e, bem por isso, antes de qualquer mudança nessa área, a comunidade deverá ser ouvida a respeito, com a realização de audiências públicas, o que, porém, não se verificou no presente caso.

         Trata-se a exigência constitucional de prévia oitiva da comunidade interessada de típica expressão da democracia participativa, que, consoante o abalizado magistério de José Afonso da Silva, se caracteriza pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo (Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 33.ª edição, 2010, p. 141).

         Ou seja, em matéria urbanística, a comunidade deverá sempre ser chamada a manifestar-se sobre as mudanças que irão afetar diretamente sua vida, tratando-se, pois, de mais um mecanismo de defesa contra as alterações incriteriosas, arbitrárias, visando ao atendimento de interesses econômicos privados em detrimento do interesse público, prática comumente verificada nessa área.

         Conclui-se, assim, na esteira dos precedentes jurisprudenciais trazidos à colação, que, ao alterar as normas sobre o uso e ocupação do solo, a Câmara de Vereadores de Ubatuba usurpou a competência do Prefeito, no campo da iniciativa reservada de lei, com reflexo na independência e harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º), mudança essa que, de mais a mais, foi promovida sem a participação da comunidade diretamente afetada (CE, art. 180, inciso II).

         Nesse contexto, o parecer que ora ofereço é pela procedência da presente ação direta, com a confirmação da liminar.

                                 São Paulo, 3 de novembro de 2011.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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