Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0203247-25.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Ribeirão Preto

Objeto: inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 2.220, de 09 de outubro de 2007, do Município de Ribeirão Preto.

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 2.220/07 do Município de Ribeirão Preto. Iniciativa parlamentar. Autorização ao Poder Executivo para concessão do uso de aterro sanitário. Violação da separação de poderes. Reserva da Administração. Procedência da ação. A lei municipal, de iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo à prática de atos de administração ordinária, como a concessão de uso de bem público, é inconstitucional por violação à reserva da Administração decorrente do princípio da separação de poderes.

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade contestando a Lei Complementar n. 2.220, de 09 de outubro de 2007, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo à concessão de uso de aterro sanitário, após o término de sua vida útil, para a exploração sustentável do gás bioquímico, com objetivo de obtenção de créditos de carbono para posterior negociação junto a organismos de fomento ou por meio de bolsas eletrônicas, sob alegação de contrariedade aos arts. 5º, 37, 47, II, e 144, da Constituição Estadual, e à Lei Orgânica do Município (fls. 02/07).

2.                A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo objurgado (fls. 31/33).

3.                A Câmara Municipal nas informações articula preliminar de falta de interesse de agir face à sanção tácita do projeto de lei respectivo e defendeu o ato normativo impugnado (fls. 39/43).

4.                É o relatório.

5.                Eventual sanção tácita não descredencia o interesse de agir, estando, ademais, revogada a Súmula 05 do Supremo Tribunal Federal. Neste sentido:

“(...) A SANÇÃO DO PROJETO DE LEI NÃO CONVALIDA O VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE RESULTANTE DA USURPAÇÃO DO PODER DE INICIATIVA.- A ulterior aquiescência do Chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício radical da inconstitucionalidade. Insubsistência da Súmula nº 5/STF. (...)” (RTJ 202/78).

6.                Destarte, não prospera a preliminar.

7.                No mérito, a ação é procedente.

8.                A lei local impugnada viola o princípio da separação de poderes na medida em que compete privativamente ao Poder Executivo o exame da conveniência e oportunidade da prática de atos de administração ordinária, como, na espécie, a outorga de concessão de uso de bem público. Nesse ponto, ela viola os arts. 5º e 47, II e XIV, da Constituição Estadual, mesmo que se repute necessária a obtenção de autorização legislativa específica para tanto. É inegável a ofensa à denominada reserva da Administração, bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

9.                Nem se argumente que se trata de mera autorização. Cuida-se, é verdade, de lei autorizativa, mas, essa qualificação não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade.

10.              A autorização legislativa não se confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da reserva de iniciativa.

11.              Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências previstas na lei.

12.              Lição doutrinária abalizada, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina que:

“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).

13.              A lei que autoriza o Poder Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional.

14.              Neste sentido, vem julgando este egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO – INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO - AÇÃO PROCEDENTE.

A lei inquinada originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração Municipal, o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do Poder Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização para desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u., 19-05-2010).

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7, Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).

15.              A argumentação da natureza autorizativa da norma e da inércia na execução da lei não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade. Essa questão foi bem examinada pela Suprema Corte que assim manifestou:

“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).

16.              Com efeito, em matéria administrativa a Administração Pública está vinculada positivamente ao princípio da legalidade (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição Estadual) e, atento à consideração essencial do cancelamento da Súmula 05 do Supremo Tribunal Federal, afigura-se impossível ao Chefe do Poder Executivo (vetando ou não a lei de iniciativa parlamentar que disciplina a matéria) cumpri-la (ou seja, atender à autorização nela contida), pois, a inconstitucionalidade a tisna desde seu nascedouro, e a dimensão do princípio da legalidade (rectius: juridicidade) requer a conformidade dos atos da Administração com o ordenamento jurídico inteiro – inclusive as normas constitucionais.

17.              Opino pela procedência da ação.

                São Paulo, 02 de dezembro de 2011.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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