Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0210287-58-2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Franca

Objeto: inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1º da Lei n. 7.553, de 05 de julho de 2011, do Município de Franca

 

 

 

Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.553 (par. único do art. 1º) do Município de Franca. Autorização da prorrogação de convênio com a Polícia Militar para fiscalização de trânsito. Emenda parlamentar definindo a atividade como atribuição exclusiva e privativa do órgão estadual, vedando a atuação da guarda civil municipal. Violação à separação de poderes inexistente. Pertinência temática da emenda parlamentar. Autonomia e competência do Município e da Guarda Municipal. Procedência parcial da ação. Interpretação conforme à Constituição.   1. Inconsistência da arguição de violação à separação de poderes em emenda parlamentar a projeto de lei de iniciativa do Chefe do Poder Executivo que, autorizando a prorrogação de convênio com a Polícia Militar para polícia do trânsito municipal, estabelece que “a fiscalização do trânsito no Município de Franca é atribuição privativa e exclusiva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, nos termos do convênio que integra e incorpora a presente lei, vedada a atuação da Guarda Civil Municipal”. 2. A reserva de iniciativa legislativa é a contradição da denominada reserva da Administração – espaço conferido pela Constituição para normatização privativa do Poder Executivo, sem intervenção do Poder Legislativo – na medida em que a Constituição exige e impõe para a matéria ato normativo produzido no Poder Legislativo, conquanto reservada sua iniciativa ao Chefe do Poder Executivo. 3. Não viola a separação de poderes emenda parlamentar a projeto de lei de iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo que guarda pertinência temática ou não implica aumento de despesa. 4. Procedência parcial da ação pela inconstitucionalidade da expressão “vedada a atuação da Guarda Civil Municipal” porque a polícia de trânsito é serviço que concretiza assunto de interesse preponderantemente local, e o art. 147, CE (que reproduz o art. 144, § 8º, CF), ao cunhar a competência das Guardas Municipais também se refere aos serviços dos Municípios. 5. Necessidade de interpretação conforme à Constituição à expressão “atribuição privativa e exclusiva” contida na mesma disposição legal, e que é incompatível com a autonomia e a competência do Município, para assegurar o exercício da polícia de trânsito por agentes, órgãos ou entidades municipais, inclusive a Guarda Municipal (arts. 144 e 147, CE; arts. 18, 30, e 144, § 8º, CF). 6. Incompetência do Município para disciplina normativa de atribuições da Polícia Militar estadual (art. 141, § 2º, CE).

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Franca contestando o parágrafo único do art. 1º da Lei n. 7.553, de 05 de julho de 2011, que estabelece ser a fiscalização do trânsito no Município de Franca atribuição privativa e exclusiva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, nos termos do convênio que a integra e incorpora, vedada a atuação da Guarda Civil Municipal, resultante de emenda parlamentar, por violação aos arts. 5º, 47, II, e 144, da Constituição Estadual (fls. 02/16).

2.                A liminar foi indeferida (fls. 103/104), e o agravo regimental interposto (fls. 109/113) foi improvido (fls. 133/136).

3.                O douto Procurador-Geral do Estado defendeu a constitucionalidade da norma impugnada e postula a dispensa de interpretação conforme à Constituição para reconhecimento da ausência de impedimento, pela norma contestada, ao exercício do policiamento de trânsito por servidores públicos municipais competentes nos termos do Código Brasileiro de Trânsito (fls. 120/130).

4.                A Câmara Municipal de Franca também defendeu a constitucionalidade do dispositivo legal objurgado (fls. 140/143).

5.                É o relatório.

6.                O Prefeito do Município de Franca encaminhou à Câmara Municipal o Projeto de Lei n. 80/2011 (fl. 22), através da Mensagem n. 48/2011 (fl. 21), cujo art. 1º autorizava o Poder Executivo a prorrogação do convênio com o Governo do Estado de São Paulo, pela Secretaria da Segurança Pública, objetivando disciplinar as atividades previstas no Código Brasileiro de Trânsito (Lei n. 9.503/97), delegando competências de trânsito atribuídas ao Município.

7.                No transcurso do processo legislativo os Vereadores aprovaram emenda aditiva (fl. 47) que inseriu no art. 1º o parágrafo único, verbis:

“A fiscalização do trânsito no Município de Franca é atribuição privativa e exclusiva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, nos termos do convênio que integra e incorpora a presente lei, vedada a atuação da Guarda Civil Municipal” (fl. 46).

8.                O Prefeito, então, sancionou o projeto de lei (fl. 50), vetando parcialmente essa disposição (fls. 52/72), restando rejeitado o veto (fls. 73/99) e promulgada a lei (fls. 100/101).

9.                A iniciativa legislativa sobre o assunto, inerente à organização do sistema de polícia municipal de trânsito, era reservada ao Chefe do Poder Executivo, nos termos do disposto no art. 24, § 2º, 2, da Constituição do Estado, aplicável aos Municípios por força de seu art. 144, e que, em linhas gerais, reproduz o quanto contido no art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, porque envolve competências do Poder Executivo.

10.              A existência da reserva de iniciativa legislativa implica a impropriedade de qualquer interpretação conducente à afirmação da exclusividade do Poder Executivo para disciplina do assunto.

11.              Em outras palavras, a reserva de iniciativa legislativa é a contradição da denominada reserva da Administração – espaço conferido pela Constituição para normatização privativa do Poder Executivo, sem intervenção do Poder Legislativo – na medida em que a Constituição exige e impõe para a matéria ato normativo produzido no Poder Legislativo, conquanto reservada sua iniciativa ao Chefe do Poder Executivo.

12.              Essa conclusão fulmina a arguição de violação aos arts. 5º e 47 da Constituição Estadual.

13.              Cumpre, então, a aferição do exercício do poder de emenda, pelo Poder Legislativo, ao projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

14.              A Constituição Estadual reproduz o princípio da separação dos poderes (divisão funcional do poder) constante do art. 2º da Constituição Federal em seu art. 5º, assim como os preceitos de reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo dispostos no art. 61, § 1º, II, no art. 24, § 2º.

15.              Consoante sólidos precedentes da Suprema Corte, perfilhados por este colendo Órgão Especial, a disciplina do processo legislativo na Constituição Federal, inclusive das hipóteses de reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória nos Estados pelo princípio da simetria, o que se esparge aos Municípios, não bastasse o art. 144 da Constituição Estadual sujeitá-los aos preceitos da Constituição Federal e da Constituição Estadual.

16.              Também a Constituição Estadual limita as emendas parlamentares, com a seguinte regra:

“Art. 24. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, a Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição:

(...)

§ 5º. Não será admitido o aumento da despesa prevista:

1 – nos projetos de iniciativa exclusiva do Governador, ressalvado o disposto no art. 174, §§ 1º e 2º; (...)”.

17.              O preceito repete o quanto disposto no art. 63, I, da Constituição da República.

18.              Este panorama não indica que ao Poder Legislativo é vedada a inclusão em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo senão nos casos em que faltar pertinência temática ou houver aumento da despesa prevista (art. 24, § 5º, 1, Constituição Estadual), o que desabona a arguição de inconstitucionalidade porque a previsão controvertida não gera acréscimo à despesa originariamente prevista e nem falece pertinência temática.

19.              Cumpre enfatizar como destacado pelo Supremo Tribunal Federal que:

“(...) O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em ‘numerus clausus’, pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa. (...)” (RTJ 210/1.084).

“(...) 3. O Poder Legislativo detém a competência de emendar todo e qualquer projeto de lei, ainda que fruto da iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (art. 48 da CF). Tal competência do Poder Legislativo conhece, porém, duas limitações: a) a impossibilidade de o Parlamento veicular matéria estranha à versada no projeto de lei (requisito de pertinência temática); b) a impossibilidade de as emendas parlamentares aos projetos de lei de iniciativa do Executivo, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 166, implicarem aumento de despesa pública (inciso I do art. 63 da CF). Hipóteses que não se fazem presentes no caso dos autos. Vício de inconstitucionalidade formal inexistente. (...)” (STF, ADI 3.288-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, 13-10-2010, v.u., DJe 24-02-2011).

“CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. PODER DE EMENDA PARLAMENTAR: PROJETO DE INICIATIVA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SERVIDOR PÚBLICO: REMUNERAÇÃO: TETO. C.F., art. 96, II, b. C.F., art. 37, XI. I. - Matérias de iniciativa reservada: as restrições ao poder de emenda ficam reduzidas à proibição de aumento de despesa e à hipótese de impertinência da emenda ao tema do projeto. Precedentes do STF: RE 140.542-RJ, Galvão, Plenário, 30.09.93; ADIn 574, Galvão; RE 120.331-CE, Borja, ‘DJ’ 14.12.90; ADIn 865-MA, Celso de Mello, ‘DJ’ 08.04.94. II. - Remuneração dos servidores do Poder Judiciário: o teto a ser observado, no Judiciário da União, é a remuneração do Ministro do S.T.F. Nos Estados-membros, a remuneração percebida pelo Desembargador. C.F., art. 37, XI. III. - R.E. não conhecido” (STF, RE 191.191-PR, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 12-12-1997, v.u., DJ 20-02-1998, p. 46).

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. INICIATIVA PRIVATIVA DO PODER EXECUTIVO. EMENDA PELO PODER LEGISLATIVO. AUMENTO DE DESPESA. 1. Norma municipal que confere aos servidores inativos o recebimento de proventos integrais correspondente ao vencimento de seu cargo. Lei posterior que condiciona o recebimento deste benefício, pelos ocupantes de cargo em comissão, ao exercício do serviço público por, no mínimo, 12 anos. 2. Norma que rege o regime jurídico de servidor público. Iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Alegação de inconstitucionalidade desta regra, ante a emenda da Câmara de Vereadores, que reduziu o tempo mínimo de exercício de 15 para 12 anos. 3. Entendimento consolidado desta Corte no sentido de ser permitido a Parlamentares apresentar emendas a projeto de iniciativa privativa do Executivo, desde que não causem aumento de despesas (art. 61, § 1º, ‘a’ e ‘c’ combinado com o art. 63, I, todos da CF/88). Inaplicabilidade ao caso concreto. 4. Se a norma impugnada for retirada do mundo jurídico, desaparecerá qualquer limite para a concessão da complementação de aposentadoria, acarretando grande prejuízo às finanças do Município. 5. Inteligência do decidido pelo Plenário desta Corte, na ADI 1.926-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 6. Recurso extraordinário conhecido e improvido” (RTJ 194/352).

“(...) Não havendo aumento de despesa, o Poder Legislativo pode emendar projeto de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, mas esse poder não é ilimitado, não se estendendo ele a emendas que não guardem estreita pertinência com o objeto do projeto encaminhado ao Legislativo pelo Executivo e que digam respeito a matéria que também é da iniciativa privativa daquela autoridade. (...)” (STF, ADI 546-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 11-03-1999, m.v., DJ 14-04-2000, p. 30).

20.              A Suprema Corte reconhece a validade de leis cujas emendas parlamentares não ultrapassaram a pertinência temática objetiva e não resultaram aumento de despesa prevista:

“Servidores da Câmara Municipal de Osasco: vencimentos: teto remuneratório resultante de emenda parlamentar apresentada a projeto de lei de iniciativa reservada ao Poder Executivo versando sobre aumento de vencimentos (L. mun. 1.965/87, art. 3º): inocorrência de violação da regra de reserva de iniciativa (CF/69, art. 57, parág. único, I; CF/88, art. 63, I)). A reserva de iniciativa a outro Poder não implica vedação de emenda de origem parlamentar desde que pertinente à matéria da proposição e não acarrete aumento de despesa: precedentes” (STF, RE 134.278-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 27-05-2004, m.v., DJ 12-11-2004, p. 06).

22.             O douto Procurador-Geral do Estado salienta que a norma controvertida ao vedar a atuação da Guarda Civil Municipal na polícia de trânsito do Município não diverge do art. 147 da Constituição do Estado de São Paulo, que reproduz o disposto no art. 144, § 8º, da Constituição da República.

23.              Entretanto, as normas tomadas como paradigmas estabelecem a competência das Guardas Municipais para “proteção de seus bens, serviços e instalações” (isto é, do Município). E o policiamento de trânsito, nos Municípios, como bem expõe a Procuradoria-Geral do Estado, é assunto de interesse preponderantemente local e, portanto, pertence ao Município (fls. 122/123).

24.              A polícia de trânsito é serviço que concretiza assunto de interesse preponderantemente local, pertencendo ao Município, e o art. 147 da Constituição Estadual (que reproduz o art. 144, § 8º, da Carta Magna), ao cunhar a competência das Guardas Municipais também se refere aos serviços municipais.

25.              Ora, ao vedar o dispositivo legal impugnado a atuação da Guarda Municipal sobre serviço municipal, surge a incompatibilidade da norma com o art. 147 da Constituição Estadual.

26.              Para agravar, a norma impugnada também comete a polícia municipal de trânsito de forma exclusiva e privativa a órgão estadual, o que implica, como bem observado pelo digno Procurador-Geral do Estado, ofensa à autonomia municipal (fls. 127/128), por haver o ente público local renunciado à sua competência.

27.              Situando o debate exclusivamente no patamar constitucional – ainda que não se ignore a possibilidade, conferida pelo Código Brasileiro de Trânsito, de os Municípios celebrarem convênio com os Estados para delegação da polícia de trânsito, sem prejuízo da atuação concomitante (arts. 6º a 8º, 23, III, 24 e 25) -, está a merecer essa parte do dispositivo legal impugnado interpretação conforme, como postulado pelo digno Procurador-Geral do Estado, consistente na afirmativa da inexistência de óbice ao exercício da polícia de trânsito por agentes, órgãos ou entidades municipais, inclusive pela Guarda Municipal, à luz dos arts. 144 e 147 da Constituição Estadual.

28.              Convergente a esta prospecção avulta, sem dúvida alguma, a incompetência do Município para, mediante lei, conferir atribuições exclusivas à Polícia Militar, órgão do Poder Executivo Estadual, à vista do disposto no art. 141, § 2º, da Constituição Estadual.

29.              O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

30.              Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e a seus arts. 18, 30 e 144, § 8º.

31.              Opino pela procedência parcial da ação para declarar a inconstitucionalidade da expressão “vedada a atuação da Guarda Civil Municipal” constante do parágrafo único do art. 1º da Lei n. 7.553, de 05 de julho de 2011, do Município de Franca, por sua incompatibilidade com o art. 147 da Constituição Estadual, e para emprestar interpretação conforme à Constituição à expressão “atribuição privativa e exclusiva” contida na mesma disposição legal, para assegurar o exercício da polícia de trânsito por agentes, órgãos ou entidades municipais, inclusive a Guarda Municipal.

                   São Paulo, 11 de abril de 2012.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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