Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº. 0269288-71.2011.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal Guarulhos
Objeto: Inconstitucionalidade
da Lei Municipal nº 6.902, de 09 de setembro de 2011, de Guarulhos
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 6.902, de 09 de setembro de 2011, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o “Tratamento e assepsia da areia contida nos tanques destinados ao lazer e recreação infantil existentes nos parques e escolas municipais e dá outras providências”.
2) Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).
3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Senhor Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo como alvo a Lei Municipal nº 6.902, de 09 de setembro
de 2011, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o
“Tratamento e assepsia da areia contida nos tanques destinados ao lazer e
recreação infantil existentes nos parques e escolas municipais e dá outras
providências”.
Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes, provocando aumento de despesa sem indicação de receita.
Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 36/37).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 44, 46/47).
A Câmara Municipal prestou informações (fls. 49/55).
É o relato do essencial.
A Lei Municipal nº 6.902, de 09 de setembro de 2011, de Guarulhos, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre o “Tratamento e assepsia da areia contida nos tanques destinados ao lazer e recreação infantil existentes nos parques e escolas municipais e dá outras providências”, tem a seguinte redação:
“(...)
Art. 1º. A areia contida nos tanques destinados ao lazer e recreação infantil existentes nos parques e escolas municipais, deverão receber, periodicamente, tratamento e assepsia para descontaminação e combate de bactérias e verminoses em geral.
Art. 2º. O Poder Executivo regulamentará esta lei, dispondo, dentre outras determinações correlatas, sobre:
I – normas e periodicidade dos procedimentos;
II – padrões de contaminação;
III – fiscalização e sanções; e
IV – órgão municipal responsável pelos procedimentos em locais sob administração pública.
Art. 3º. As despesas decorrentes desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
(...)”
Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.
Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.
Em outras palavras se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.
Criar determinado programa governamental, ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.
A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e
art. 144).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O diploma
impugnado, na prática, invadiu a esfera
da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a
harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.
Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.
Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.902, de 09 de setembro de 2011, de Guarulhos.
São Paulo, 08 de fevereiro
de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
rbl