Parecer
Autos n.º 0276531-66.2011.8.26.0000
Requerentes: Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo –
SIFAESP e Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP
Objeto de impugnação: Lei nº 526,
de 20 de novembro de 2008, do Município de Mira Estrela.
Ementa: Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei nº 526, de 20 de novembro de 2008, do
Município de Mira Estrela, que proibiu o emprego de fogo na despalha da
cana-de-açúcar, como método de colheita, em todo o território municipal.
Alegação de que, ao editar o ato normativo, o Município usurpou a competência
do legislador estadual, com violação dos arts. 23, e seu parágrafo único, nº
14; 192, § 1º; e 193, incisos XX e XXI, da Constituição do Estado de São Paulo.
Desacolhimento. O direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado impõe deveres ao Poder Público em todos os níveis de Governo, possibilitando,
assim, a edição de atos normativos, pelos Municípios, que atendam à finalidade
de especial proteção desse bem jurídico. Precedentes do Órgão Especial do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ação improcedente.
Colendo
Órgão Especial,
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator:
O Sindicato
da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo (SIFAESP) e o
Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP)
propuseram ação visando à declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 526, de
20 de novembro de 2008, do Município de Mira Estrela, que proíbe o emprego de
fogo na despalha da cana-de-açúcar como método de colheita. Em síntese, aduziram
que, ao editar esta lei, o Município em questão usurpou a competência
legislativa estadual.
Apontaram
violação dos arts. 23, e seu parágrafo único, nº 14; 192, § 1º; e 193, incisos
XX e XXI, da Constituição do Estado de São Paulo.
Houve
concessão de liminar (fls. 284/285).
Notificados,
o Prefeito e o Presidente da Câmara Municipal prestaram informações no prazo
regimentalmente previsto, em defesa da validade da norma local, editada com o
fito de proteger a saúde da população e, outrossim, o meio ambiente.
Citada
para os fins do art. 90, § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo, a
Procuradoria-Geral do Estado se posicionou pela inconstitucionalidade da lei
municipal, ante a invasão da esfera de competência legislativa estadual.
Em
resumo, é o que consta nos autos.
“Data venia”, malgrado o exposto na inicial, a
presente ação deve ser julgada improcedente.
Com efeito, a Lei Municipal nº 526, de 20 de
novembro de 2008, de Mira Estrela,
teve por fim garantir o bem estar da população da cidade e melhorar as
condições ambientais do referido Município, que, no período da seca, se
ressente dos deletérios efeitos das queimadas, dentre elas as da palha da
cana-de-açúcar, que espalham gases tóxicos na atmosfera local.
Basicamente,
a questão jurídica se resume em saber se é possível ao Município de Mira
Estrela legislar sobre o tema.
Para o início da exposição, deve-se ter em mente
que a expressão “PODER PÚBLICO”, lançada no artigo 225, caput, da Constituição da República, abrange tanto a Câmara
Municipal quanto o Poder Executivo local.
Ou seja, à Câmara Municipal e ao Poder Executivo
municipal incumbem a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, do
ponto de vista material e legislativo, embora não haja competência privativa ou
exclusiva na defesa desse direito, porquanto o seu verdadeiro titular é a
coletividade, por se estar diante de direito fundamental, metaindividual, de
terceira geração.
Assim, todos os Poderes dos Municípios devem agir
para a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse
contexto, afigura-se louvável a iniciativa do Município de Mira Estrela e, da
análise sistemática do texto constitucional federal, é possível extrair-se a
exegese segundo a qual o Município, pelo chefe do Poder Executivo, ou por meio
de membro do Poder Legislativo municipal, tem competência legislativa para a
defesa do meio ambiente, não sendo correta a conclusão no sentido de que, em
matéria ambiental, o município tenha apenas função suplementar e restrita ao
interesse local.
Também é relevante consignar que a Constituição
Federal de 1988 foi pioneira ao determinar, no plano constitucional, a tutela
do bem ambiental, elevando-o à condição de direito/garantia fundamental.
Segundo
Luís Roberto Barroso (Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo:
Saraiva, 1996, p. 153):
“a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se
em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a
fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para
a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda a
atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da
Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra
um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz
norte-americana como judicial review,
e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’”.
Os parâmetros para o controle de
constitucionalidade, portanto, são os aspectos formais e materiais da produção
normativa infraconstitucional. Daí a razão pela qual se fala em
inconstitucionalidade formal e material.
A análise puramente formal das questões discutidas
na presente ação direta até pode levar o intérprete a concluir, açodadamente,
pela inconstitucionalidade da lei municipal.
Ao instituir o bem ambiental como bem jurídico
fundamental, o legislador constituinte trouxe um importante dever ao Poder
Público e também aos prefeitos municipais: determinou ao Poder Público uma
série de deveresfundamentais.
Com efeito,
estabelece o art. 225, caput, que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O § 1.º do mencionado dispositivo
legal explicita diversos deveres:
"Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do
patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação,
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo
a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de
obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os
níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Portanto, não resta dúvida: INCUMBE AO PODER
PÚBLICO A DEFESA DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. Não há discricionariedade.
A EXPRESSÃO “PODER PÚBLICO” ABRANGE A CÂMARA
MUNICIPAL E O CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL.
Ou seja, ao Município também incumbe a defesa do
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Não há competência privativa ou exclusiva dos
demais entes federativos, de forma a relegar o município a um plano secundário
na tutela ambiental.
Assim, no caso em análise, o Município agiu nos
limites de sua competência para legislar sobre assuntos de interesse local (CF,
art. 30, I) e respaldado pelo art. 225 da Constituição da República, que erigiu
o bem ambiental à condição de bem jurídico fundamental.
Reputar-se inconstitucional a atitude do legislador
municipal que atua na defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado também
significa contrariar o artigo 23, VI, da
Constituição Federal, que afirma ser de competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas.
Todos os Poderes devem agir, em sinergia, para a
defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Além disso, consoante a magistral lição de Juarez
Freitas, “no centro do dilema entre legalidade e legitimidade, o juiz há de
posicionar-se de modo transdogmático, na busca de um sistema jurídico aberto,
epistemologicamente, à sociedade que, em regra, deslegitima os logicismos
formais de todas as correntes positivistas que desprezam os princípios
fundamentais, garantidos e assegurados na própria Constituição. Tais
princípios, a propósito, exigem que a legalidade se subordine à legitimidade,
esta última consagrada por estes mesmos princípios, aos quais se deve garantir
a maior eficácia, sob pena de reduzi-los a meros enunciados retóricos, sem a
efetividade concreta que a sociedade tanto solicita” (A substancial
inconstitucionalidade da lei injusta, Petrópolis: Vozes/EDIPUCRS, 1989, p.
107).
O citado autor (op. cit., p. 90), aliás, formula um
exemplo perfeitamente coincidente com o caso em tela. Por isso, pede-se licença
para reproduzi-lo:
“Só à guisa de exemplificação, admitamos a hipótese de que um juiz
federal, atribuindo a pecha de inconstitucionalidade à Lei Estadual, pois a
competência para legislar sobre florestas é exclusiva da União, julgue
improcedente a impetração de mandado de segurança contra ato de autoridade do
Estado-membro, que determina a sustação dos pedidos de exploração florestal para
o abate e a industrialização de árvores nativas, argumentando que não se pode
ter do Direito uma estreita visão positivista, desconhecendo que ao Direito do
Estado deve-se antepor a prova do ‘jusnaturalismo’. Admitir-se – pensou ele –
que a norma escrita, posta pelo Estado, contém, única e exclusivamente, o
Direito, é cair em grave risco, razão pela qual aplica o dispositivo por ele
considerado, equivocadamente, inconstitucional.
Faltou a este juiz imaginário uma correta formação dialética, pois, ao
invés de reconhecer a inconstitucionalidade do diploma estadual, julgando que o
ato da autoridade impetrada deveria ser mantido pelo direito natural à vida e à
dignidade humana, deveria considerá-lo constitucional, pois tais direitos, não
apenas retoricamente, constituem os fundamentos constitucionais do Estado
Democrático de Direito”.
De fato,
o aspecto material da constitucionalidade não pode ser desprezado.
E, por esse
aspecto, o Município tem competência para legislar sobre a questão de interesse
local tratada na referida lei, inclusive no que tange à proibição de queimadas,
não padecendo da necessidade de controle abstrato, visto que não ofende,
frontalmente, a Constituição Bandeirante e está apta a permanecer no mundo
jurídico.
A
proibição da queima da palha da cana-de-açúcar no Município, evidentemente, não
coloca em perigo “fatores sensíveis da economia regional” envolvendo a
realização da colheita desta cultura, como argumentam as entidades autoras, já
que, sabidamente, o setor vem, ano a ano, aumentando, significativamente, a
quantidade de hectares de cana crua colhidos mecanicamente. Este aspecto deita
por terra o argumento de que o interesse é somente regional ou Estadual, até
porque a norma abstrata não pode ser totalmente divorciada da possibilidade de
aplicação concreta - para isso ela é feita, aplicação ao caso concreto – e como
já dito, os munícipes são os primeiros a sofrer com os efeitos das queimadas da
palha da cana-de-açúcar no território do município.
E aos
argumentos relacionados à afirmação da competência do Município para a
proibição de queimadas ao ar livre em seu território, somam-se os preceitos da
Constituição Federal, cuja transcrição é de rigor:
“Art. 182 – A Política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem-estar de seus habitantes.
1º - O plano diretor, aprovado
pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil
habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão
urbana (...)” .
Ainda
sobre o interesse local, é inequívoca a competência dos Municípios para
legislarem sobre questões de ordenamento do solo, mormente o urbano e de
expansão urbana, dispõe a Lei Federal nº 10.257, de 10.07.2001 – Estatuto da
Cidade:
“Art. 39 – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor,
assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de
vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas,
respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.
Art. 40 – O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
1º - O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento
municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o
orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
§ 2º - O plano diretor deverá englobar o território do Município como um
todo”.
Já o art.
4º do Estatuto da Cidade dispõe:
“Art. 4º - Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros
instrumentos:
(...)
III – planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental (...)”.
Pertinente,
ademais, invocar, mais uma vez, o conteúdo da espinha dorsal do Capítulo VI -
Do Meio Ambiente, inscrito pelo constituinte originário de 1988:
“Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Frise-se,
ainda, que as disposições do capítulo referente ao meio ambiente encontram eco
em outros princípios do texto fundamental, inclusive, como elemento de
legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art. 170, III e
VI, da CF:
“Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano
e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
III – função social da propriedade;
VI – defesa do meio ambiente”.
Ainda
sobre o interesse e competência de todos os organismos do Estado na proteção
ambiental, bem assim no resguardo e recuperação da qualidade de vida e saúde da
população, mister acorrer ao texto da Carta Política Bandeirante:
“Art. 191 – O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação
da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do
meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais
e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.
Art. 192 – A execução de obras, atividades, processos produtivos e
empreendimentos e a exploração de recursos naturais de qualquer espécie, quer
pelo setor público, quer pelo privado, serão admitidas se houver resguardo do
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Art. 201 – O Estado apoiará a formação de consórcios entre os
Municípios, objetivando a solução de problemas comuns relativos à proteção
ambiental, em particular à preservação dos recursos hídricos e ao uso
equilibrado dos recursos naturais”.
Do que se
extrai até aqui, considerando a unicidade do Direito e, sendo que a lei – como uma das principais fontes do
direito pátrio - não contém palavras e disposições inúteis e, igualmente,
considerando que os princípios constitucionais devem ser interpretados,
aplicados e harmonizados sem prevalência de uns em detrimento de outros, não há
como negar que o Município, por meio dos seus representantes eleitos, no caso
sob análise, tem competência e o dever de zelar pelo interesse público da
manutenção da qualidade de vida local.
No
julgamento da Apelação Cível nº 240.742.5/5, da Comarca de Mauá, deduzida em
Mandado de Segurança e tendo como apelada a Secretaria do Planejamento e Meio
Ambiente do Município de Mauá, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em
acórdão relatado pelo Eminente Desembargador Soares Lima, enfocando o tema da
competência legislativa dos municípios, denegou a ordem em pleito de anulação
de indeferimento de licenciamento ambiental nos seguintes termos:
“(...) Inconsistente se afigura o reclamo, na medida em que não se
vislumbra a inconstitucionalidade do artigo 157, da Lei Orgânica do Município
de Mauá.
A propósito, justificado ficou, de passagem, que ‘os direitos de livre
concorrência não são absolutos, podendo sofrer limitações em prol do interesse
social’ (fls. 220).
Realmente, embora a livre concorrência tenha sido ditada
constitucionalmente em princípio geral da atividade econômica (art. 170, IV, da
Constituição Federal), a defesa do meio ambiente também o foi (inciso VI), o
que ‘tem o efeito de condicionar a atividade produtiva ao respeito do meio
ambiente e possibilita ao Poder Público interferir drasticamente, se
necessário, para que a exploração econômica preserve e ecologia’ (Curso de
Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 11ª ed., 1996, Malheiros
Editores, SP., pág. 728).
Nessa ordem de raciocínio, de toda evidência que a lei municipal não
invadiu esfera de competência exclusiva do Estado ou da União, traçando
parâmetros para a execução de atividade de fins lucrativos que,
indiscutivelmente, deteriora o meio ambiente, vez que lhe cabe ‘o controle do
uso, parcelamento e ocupação do solo urbano’ (artigo 30, VIII, da Carta Magna)
cumprindo-lhe, ainda, ‘proteger o meio ambiente e combater a poluição em
qualquer de suas formas’ (artigo 23, VI, da Constituição Federal).
É o quanto basta para desvanecer o almejado direito subjetivo líquido e
certo dos impetrantes. Nego provimento ao recurso”.
No plano
do pacto federativo, o art. 1º, da Constituição Federal de 1988, não deixa
nenhuma dúvida acerca da autonomia política dos municípios, ao dispor:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal (...)”.
E o
projeto de repartição de competências introduzido pelo constituinte, segundo o
magistério de Joaquim Castro Aguiar, (Competência e Autonomia Dos Municípios na
Nova Constituição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág.19), “contrariamente ao
que se costuma ver nos regimes federativos, a federação brasileira possui
quatro centros distintos de poder: um, federal, da União; um, regional, dos
Estados-membros; um, do Distrito Federal; e um quarto, local, dos Municípios,
todos autônomos e com poderes políticos emanados diretamente da Constituição.
Embora tenha atribuído à União um quinhão maior na partilha das competências,
concedeu ao Município um poder, insuscetível de usurpação pelo governo central
ou pelo regional e sem qualquer diferença de caráter dos poderes concedidos à
União e ao Estado (...). Do exposto pode-se chegar à conclusão de que a lei
municipal não é menos autêntica do que a lei federal e a estadual. O Município
faz parte, pois, da estrutura do regime federativo brasileiro. Não recebeu
competência por delegação da União ou do Estado. Possui competência originária,
de primeiro grau, nascida da própria Constituição, diretamente”.
A
doutrina de José Souto Maior Borges (Lei Complementar Tributária, RT, São
Paulo, 1975, págs.10/12) ensina que “não há desníveis hierárquicos entre as
pessoas constitucionais, que juridicamente são iguais entre si”. E na sequência
arremata: “No campo de competência do Município, a lei municipal é exclusiva e
excludente de qualquer outra lei. Não está acima nem abaixo das leis federais e
estaduais, precisamente porque está isolada na sua esfera privativa de
competência”.
E,
comentando as competências exclusiva, privativa, comum, concorrente e
suplementar da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal, leciona
Joaquim Castro Aguiar (op. cit., p. 24):
“Existem matérias sobre as quais tanto a União, quanto os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios podem legislar, sendo os poderes
compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar, como exemplos, a
proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e controle da poluição.
Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no sentido de que cada
ente federativo possui um quinhão do poder legislativo, nessa partilha de
competências. A matéria não é exclusiva e nem privativa de ninguém, podendo,
pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital ou municipal”.
A
Constituição Federal, no art. 23, prevê como segue:
“Art. 23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios:
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico,
artística e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de
arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas
formas”;
A
respeito do tema, pontua Vladimir Passos de Freitas (A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais, 2.ª
ed., São Paulo, RT, 2002, p. 75) que:
“A Constituição Federal, no art. 23, partilhou entre os vários entes da
Federação um vasto rol de matérias em que todos, isolados, em parceria ou em
conjunto, podem atuar segundo regras pré-estabelecidas. É a chamada competência
comum. Ela se distingue da competência concorrente, que se verifica quando em
relação a uma só matéria concorre mais de uma pessoa política”.
De outro
lado, indispensável recordar o conteúdo do que dispõe o art. 30 da Constituição
Federal:
“Art. 30 – Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial,
mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo
urbano”.
Ao
discorrer sobre o assunto, José Nilo de Castro observa que “inegavelmente, cabe
ao Município, como poder público, dispor sobre regras de direto, legislando em
comum com a União e o Estado, com fundamento no art. 23, VI, CF. Portanto,
quando um Município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo
administrativo, em se tratando de competência comum -, disciplinar esta
matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a
ordenação pela compatibilidade local, e consideração a esta ou àquela vocação
sua” (“Perspectivas do Direito Municipal”, “in”. Ciência Jurídica, set-out.
1993, vol. 53, pág.131).
Para
Toshio Mukai, de outro lado, “a competência do Município é sempre concorrente
com a da União e a dos Estados-membros, podendo legislar sobre todos os
aspectos do meio ambiente, de acordo com sua autonomia municipal (art. 15 da
CF), prevalecendo sua legislação sobre qualquer outra, desde que inferida do
seu predominante interesse; não prevalecerá em relação às outras legislações,
nas hipóteses em que estas forem diretamente inferidas de suas competências
privativas, subsistindo a do Município, entretanto, embora observando as
mesmas” (“Legislação, meio ambiente e autonomia municipal. Estudos e
Comentários”: RDP, Vol. 79, pág.131).
Ante as
circunstâncias jurídicas e regras de competência traçadas na Constituição
Federal, a existência de leis ordinárias reafirmando a autonomia política dos
municípios na República Federativa do Brasil, tudo ainda sob o enfoque da
doutrina e jurisprudência, inclusive do Egrégio Supremo Tribunal Federal, não
há como afastar a possibilidade de a edição de lei municipal destinada a
garantir a qualidade do meio ambiente e de vida à sua população.
Registre-se
que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540/DF, em acórdão do qual foi
relator o eminente Ministro Celso de Mello (Julgamento proferido pelo Tribunal
Pleno, em 1/9/2005. DJ de 3-2-2006, p. 14), proclamou que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado tem natureza de direito constitucional fundamental:
“MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) -
PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE
TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA
SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA
IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS
TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E
SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE
PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS
EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS
ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A
INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL -
RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF,
ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE
ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS
DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ
164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO
AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF,
ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO
DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO
CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS
PESSOAS.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se
de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que
assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à
própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício
das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de
caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é
irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da
coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito
ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem
essencial de uso comum das pessoas
A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses
empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica,
ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a
disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros
princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente"
(CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio
ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial
(espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos
de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela
efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os
atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento
da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar
graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu
aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º,
II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART.
225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO
JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de
caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em
compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator
de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da
ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando
ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma
condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo
essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à
preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das
pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º
DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO
EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE.
A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que
introduziu significativas alterações no art. 4º do Código Florestal, longe de
comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei
Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real
controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de
preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao
patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção
mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto
constitucional, pelo diploma normativo em questão.
Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos
espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da
cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas
ao princípio da reserva legal.
É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional
em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito
Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras
e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente
protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e
exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a
integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a
instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)”.
Sendo
assim, com enorme respeito aos pensamentos divergentes, gostaríamos de frisar
que só uma visão excessivamente formalista do Direito pode, de fato, conduzir à
conclusão de que o Município está impedido de legislar para defender o meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Não há
competência reservada apenas aos demais entes da Federação e, por isso, o
argumento da existência de lei estadual a regular a questão em debate não é
suficiente para caracterizar estrito interesse regional e alijar o interesse do
Município.
Diante do exposto, evidenciada a
compatibilidade de lei em exame com a Constituição, aguarda-se a improcedência
da presente ação direta de inconstitucionalidade, sem a confirmação
da liminar.
São Paulo, 9 de março de 2012.
Sérgio
Turra Sobrane
Subprocurador-Geral
de Justiça
Jurídico
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