Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0278337-39.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Marília

Objeto: Lei n. 6.121, de 18 de novembro de 2004, do Município de Marília

 

Ementa:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. PROCESSO LEGISLATIVO. VÍCIO DE INICIATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA.

1. Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei n. 6.121, de 18 de novembro de 2004, do Município de Marília.

2. Projeto de iniciativa de vereador. Lei que cria, junto ao Gabinete do Prefeito, Fundo Municipal de Desenvolvimento Solidário. Atribuição de obrigações aos órgãos do Poder Executivo.

3. Ofensa à Constituição Estadual. Violação de reserva de iniciativa do Executivo. Quebra da separação de poderes. Incompatibilidade vertical com dispositivos da Constituição Paulista (arts. 5º, 47, II e XIV e 144).

4. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Marília, tendo por objeto Lei n. 6.121, de 18 de novembro de 2004, que “cria, junto ao Gabinete do Prefeito Municipal, o Fundo Municipal de Desenvolvimento Solidário, como instrumento de suporte financeiro e de gerenciamento de recursos para promover ações direcionadas ao combate à pobreza e ao desemprego”.

O autor esclarece que a lei decorre de projeto subscrito por parlamentar, apontando o vício de iniciativa, pois caberia exclusivamente ao Prefeito a deflagração do processo legislativo.

O Presidente da Câmara Municipal, apesar de regularmente notificado, não prestou informações (fls. 66).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 63/65).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O pedido declaratório de inconstitucionalidade é procedente.

A Lei n. 6.121, de 18 de novembro de 2004, do Município de Marília, é incompatível com a Constituição Estadual.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

 

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos.

De outro lado, a iniciativa reservada do Executivo é fruto de disciplina expressa, não podendo o Poder Legislativo dar início a projeto de lei destinada à instituição de Fundo, que diz respeito à matéria orçamentária.

         Como salienta Régis Fernandes de Oliveira, “a Constituição estabeleceu a competência exclusiva do Presidente da República para iniciar a tramitação dos projetos orçamentários. Em segundo lugar, os projetos são eminentemente técnicos, pressupondo informações sobre a arrecadação de recursos e estabelecendo prioridades inseridas nas competências do Chefe do Executivo” (Curso de direito financeiro, São Paulo, RT, 2006, p.338/339).

         Na mesma senda, pondera Ricardo Lobo Torres, a respeito da unidade orçamentária, que ganhou ênfase na Constituição de 1988, que este princípio “sinaliza que todas as despesas e fundos da mesma pessoa jurídica devem se unificar finalisticamente no mesmo orçamento. (...) A unificação dos orçamentos teve o mérito de permitir o controle da utilização de recursos do orçamento fiscal e da seguridade social para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações e fundos (art.167 VIII, CF)” (Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol. V, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p.79).

         De outro lado, há quebra do princípio da separação de poderes nos casos em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes.

         E isso se verifica quando o ato normativo que estabelece diretrizes políticas ou programas de governo.

Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

Não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

         Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

         Exatamente esta é a hipótese dos autos.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Des. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Des. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Des. Paulo Shintate).

 

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 6.121, de 18 de novembro de 2004, do Município de Marília.

São Paulo, 13 de abril de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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