Parecer
Processo n. 0283816-13.2011.8.260000
Requerente: Prefeito Municipal de Ubatuba
Objeto: inconstitucionalidade da Lei n. 3.404, de 15 de
agosto de 2011, do Município de Ubatuba.
Constitucional. Administrativo. Ação direta de
inconstitucionalidade. Lei n. 3.404/11 do Município de Ubatuba. Iniciativa
parlamentar. Apresentação da caderneta de vacinação na admissão ao serviço
público de ensino municipal. Princípio da separação de poderes. Reserva de
iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Reserva de Administração. Princípios
da razoabilidade e da proporcionalidade. Procedência. 1. É inconstitucional lei municipal, de
iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo a tornar obrigatória a
apresentação da caderneta de vacinação na admissão de crianças no serviço
público de ensino municipal, porque o estabelecimento de regras que respeitam à
organização e ao funcionamento dos serviços administrativos da competência do
Poder Executivo é da alçada da reserva da Administração, sem embargo de
revelar-se usurpação da iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder
Executivo ao impor atribuição e obrigação a seus órgãos (arts. 5º, 24, § 2º, 2
e 47, XIX, a, CE). 2. Não bastasse, a exigência legal,
que condiciona a admissão a serviço público relevante a fator que não guarda
relação lógica com o seu acesso, não se coaduna com os princípios de
razoabilidade e de proporcionalidade (art. 111, CE).
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
contestando a Lei n. 3.404, de 15 de agosto de 2011, do Município de Ubatuba,
de iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo a tornar obrigatória
a apresentação da caderneta de vacinação na admissão de crianças ao serviço
público de ensino municipal, sob alegação de violação aos arts. 5º, 47, XIV, e
144 da Constituição Estadual (fls. 02/09).
2. Deferida a liminar (fl. 15), a douta
Procuradoria-Geral do Estado declinou da intervenção na lide (fls. 26/27) e o
Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 29/31).
3. É
o relatório.
4. O
pedido merece ser julgado procedente.
5. A
Lei n. 3.404, de 15 de agosto de 2011, assim dispõe:
“Art. 1º. Fica autorizado ao Poder Executivo a tornar obrigatório a apresentação da caderneta de vacinação no ato da inscrição de criança para admissão em creches, escolas maternais, jardins de infância e no pré-escolar, da rede pública de ensino do Município de Ubatuba.
§ 1º. A caderneta de vacinação da criança deverá estar atualizada em todos os itens de acompanhamento, no ato da apresentação.
§ 2º. Em relação à situação vacinal, as crianças deverão estar imunizadas com vacinas contidas no calendário básico da imunização.
Art. 2º. A Secretaria de Educação deverá comunicar e fiscalizar a aplicação do art. 1º desta Lei.
Art. 3º. Esta Lei entrará em vigor na data da sua publicação, com efeitos a partir de 01 de janeiro de 2012”.
6. A
lei local impugnada, de iniciativa parlamentar, condiciona a admissão ao
serviço público de ensino municipal à comprovação da vacinação da criança, inscrevendo
incumbência ao Poder Executivo municipal.
7. É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem
respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos
Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes
(art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê
no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder
Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a
criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública,
observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração
das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.
8. Também prevê no art. 47
(aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa
do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do
Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração
e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam
matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.
9. A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a
prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal.
10. A inconstitucionalidade transparece
exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos
da Constituição Estadual.
11. Pois, ao estabelecer a condição de
acesso ao serviço público de educação, de um lado, ela viola o art. 47, XIX, a, no estabelecimento de regras que
respeitam à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que
é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, §
2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
12. Com efeito, a lei local impõe
obrigação ao Poder Executivo e ao usuário de serviço público relevante, conferindo
novas atribuições e interferindo na organização administrativa. Neste sentido,
a jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE
ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE.
COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder
Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição
de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo
federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas
de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos
Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).
13. Além
disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
14. Nem
se alegue que a lei contém mera autorização. A par de criar obrigação ao
usuário de serviço público relevante, a lei impõe dever ao Poder Executivo para
admissão a esse serviço.
15. Cuida-se,
é verdade, de lei autorizativa, mas, essa qualificação não desabona a conclusão
de sua inconstitucionalidade.
16. A autorização legislativa não se
confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da
reserva de iniciativa.
17. Ainda que a lei contenha
autorização (lei autorizativa) ou permissão (norma permissiva), padece de
inconstitucionalidade. Em essência, houve invasão manifesta da gestão pública,
assunto da alçada exclusiva do Chefe do Poder Executivo, violando sua
prerrogativa de análise da conveniência e da oportunidade das providências
previstas na lei.
18. Lição
doutrinária abalizada, analisando a natureza das intrigantes
leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem
poderia solicitar a autorização, ensina que:
“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).
19. A lei que autoriza o Poder Executivo
a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma
determinação, sendo, portanto, inconstitucional.
20. Neste sentido, vem julgando este
egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas,
forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de
“determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder
Executivo:
“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.
VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.
LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O
PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO
PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO
– INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO
- AÇÃO PROCEDENTE.
A lei inquinada
originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de
ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração Municipal,
o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do Poder
Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização para
desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos
constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u.,
19-05-2010).
“Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do
Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a
todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de
material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa
da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do
Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não
obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência
material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7,
Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).
21. A
argumentação da natureza autorizativa da norma e da inércia na execução da lei
não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade. Essa questão foi bem
examinada pela Suprema Corte que assim manifestou:
“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).
22. Com efeito, em matéria
administrativa a Administração Pública está vinculada positivamente ao
princípio da legalidade (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição
Estadual) e, atento à consideração essencial do cancelamento da Súmula 05 do
Supremo Tribunal Federal, afigura-se impossível ao Chefe do Poder Executivo
(vetando ou não a lei de iniciativa parlamentar que disciplina a matéria)
cumpri-la (ou seja, atender à autorização nela contida), pois, a
inconstitucionalidade a tisna desde seu nascedouro, e a dimensão do princípio
da legalidade (rectius: juridicidade)
requer a conformidade dos atos da Administração com o ordenamento jurídico
inteiro – inclusive as normas constitucionais.
23. Por derradeiro, é conveniente
ponderar que a exigência legal, que condiciona a admissão a serviço público
relevante a fator que não guarda relação lógica ou racional com o seu acesso,
não se coaduna com os princípios de razoabilidade e de proporcionalidade,
inscritos no art. 111 da Constituição Estadual.
24. Opino pela procedência da ação por
visualizar ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a, e 111, da Constituição Estadual.
São
Paulo, 22 de fevereiro de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj