Parecer
Processo n. 0283824-87.2011.8.26.0000
Requerente:Prefeito do Município de Ubatuba
Objeto: inconstitucionalidade
das Leis n. 3.402, de 05 de agosto de 2011, e n. 3.403, de 15 de agosto de
2011, do Município de Ubatuba
Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Leis n. 3.402 e n. 3.403, de 2011, do Município de Ubatuba, de iniciativa parlamentar. Instituição da política de valorização do artesanato regional e dos circuitos turísticos.Violação da separação de poderes. Procedência da ação. 1.A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucionais as leis de iniciativa parlamentar. 2. Procedência da ação.
Colendo Órgão Especial:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
ajuizada pelo Prefeito do Município de Ubatuba impugnando a Lei n. 3.402, de 05
de agosto de 2011, que autoriza o Poder Executivo à institucionalização e ao
reconhecimento dos circuitos turísticos, e a Lei n. 3.403, de 15 de agosto de
2011, que institui a política municipal de valorização do artesanato regional,
do Município de Ubatuba, de iniciativa parlamentar, sob alegação de violação ao
princípio da separação de poderes (fls. 02/13).
2. Concedida liminar (fls. 32/33), o Presidente da Câmara
Municipal de Ubatuba prestou informações defendendo a constitucionalidade do
ato normativo (fls. 45/48).
3. A
douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 42/43).
4. É
o relatório.
5. É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente
as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância
obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel.
Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação
dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São
Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do
Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para
“a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração
pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou
alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.
6. Também prevê no art. 47
(aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa
do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do
Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração
e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam
matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.
7. A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a
prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez,
os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da
administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da
competência do Poder Executivo.
8. A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo
divórcio da iniciativa parlamentar das leis locaiscom esses preceitos da
Constituição Estadual.
9. Pois, ao instituir programas e serviços
administrativos, de um lado, elas violam o art. 47, II, XIV e XIX, a,no estabelecimento de regras que
respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do
Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de
outro, elas ofendem o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao
Poder Executivo.
10. Neste sentido, a jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE
ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE.
COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder
Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição
de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo
federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas
de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade
julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno,
Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5°e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).
11. Além
disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
12. Nem
se alegue que as leis contém mera autorização. A natureza de lei autorizativa
não desabona a conclusão de sua inconstitucionalidade.
13. A autorização legislativa não se
confunde com lei autorizativa, devendo aquela primar pela observância da
reserva de iniciativa.Ainda que a lei contenha autorização (lei autorizativa)
ou permissão (norma permissiva), padece de inconstitucionalidade. Em essência,
houve invasão manifesta da gestão pública, assunto da alçada exclusiva do Chefe
do Poder Executivo, violando sua prerrogativa de análise da conveniência e da
oportunidade das providências previstas na lei.
14. Lição
doutrinária abalizada, analisando a natureza das intrigantes
leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem
poderia solicitar a autorização, ensina que:
“(...) insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Sérgio Resende de Barros. “Leis Autorizativas”, in Revista da Instituição Toledo de Ensino, Bauru, ago/nov 2000, p. 262).
15. A lei que autoriza o Poder Executivo
a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma
determinação, sendo, portanto, inconstitucional.
16. Neste sentido, vem julgando este
egrégio Tribunal, afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas,
forte no entendimento de que essas “autorizações” são mero eufemismo de
“determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder
Executivo:
“LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.
VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.
LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (TJSP, ADI 142.519-0/5-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, 15-08-2007).
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALÍDADE - LEI N° 2.057/09, DO MUNICÍPIO DE LOUVEIRA - AUTORIZA O
PODER EXECUTIVO A COMUNICAR O CONTRIBUINTE DEVEDOR DAS CONTAS VENCIDAS E NÃO
PAGAS DE ÁGUA, IPTU, ALVARÁ A ISS, NO PRAZO MÁXIMO DE 60 DIAS APÓS O VENCIMENTO
– INCONSTITUCIONALÍDADE FORMAL E MATERIAL - VÍCIO DE INICIATIVA E VIOLAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO
- AÇÃO PROCEDENTE.
A lei inquinada
originou-se de projeto de autoria de vereador e procura criar, a pretexto de
ser meramente autorizativa, obrigações e deveres para a Administração
Municipal, o que redunda em vício de iniciativa e usurpação de competência do
Poder Executivo. Ademais, a Administração Pública não necessita de autorização
para desempenhar funções das quais já está imbuída por força de mandamentos
constitucionais” (TJSP, ADI 994.09.223993-1, Rel. Des. Artur Marques, v.u.,
19-05-2010).
“Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Lei Municipal n° 2.531, de 25 de novembro de 2009, do
Município de Andradina, 'autorizando' o Poder Executivo Municipal a conceder a
todos os alunos das escolas municipais auxílio pecuniário para aquisição de
material escolar, através de vale-educação no comércio local. Lei de iniciativa
da edilidade, mas que versa sobre matéria reservada à iniciativa do Chefe do
Executivo. Violação aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado. Não
obstante com caráter apenas 'autorizativo', lei da espécie usurpa a competência
material do Chefe do Executivo. Ação procedente” (TJSP, ADI 994.09.229479-7,
Rel. Des. José Santana, v.u., 14-07-2010).
17. A
argumentação da natureza autorizativa da norma e da inércia na execução da lei
não elide a conclusão de sua inconstitucionalidade. Essa questão foi bem
examinada pela Suprema Corte que assim manifestou:
“5. Não é tolerável, com efeito, que, como está prestes a ocorrer neste caso, o Governador do Estado, à mercê das veleidades legislativas, permaneça durante tempo imprevisível com uma lei inconstitucional a tiracolo, ou, o que o seria ainda pior, seja compelido a transmiti-la a seu sucessor, com as conseqüências de ordem política daí derivadas” (STF, ADI-MC 2.367-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 05-04-2001, v.u., DJ 05-03-2004, p. 13).
18. Com efeito, em matéria
administrativa a Administração Pública está vinculada positivamente ao
princípio da legalidade (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição
Estadual) e, atento à consideração essencial do cancelamento da Súmula 05 do
Supremo Tribunal Federal, afigura-se impossível ao Chefe do Poder Executivo
(vetando ou não a lei de iniciativa parlamentar que disciplina a matéria)
cumpri-la (ou seja, atender à autorização nela contida), pois, a
inconstitucionalidade a tisna desde seu nascedouro, e a dimensão do princípio
da legalidade (rectius: juridicidade)
requer a conformidade dos atos da Administração com o ordenamento jurídico
inteiro – inclusive as normas constitucionais.
19. Opino pela procedência da ação.
São Paulo, 02 de março de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj