Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0295562-72.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Castilho

Objeto: Lei nº 2.153, de 09 de novembro de 2011, do Município de Castilho

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 2.153, de 09 de novembro de 2011, do Município de Castilho, que “dispõe sobre declaração de nulidade de leis municipais”. Projeto de autoria de popular. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que revoga a concessão da prestação do serviço público de abastecimento de água e esgoto do Município de Castilho. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º, 47, II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 2.153, de 09 de novembro de 2011, do Município de Castilho, que “dispõe sobre declaração de nulidade de leis municipais”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu é de autoria popular e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a legislação impugnada é inconstitucional por atingir princípios constitucionais básicos, dentre eles o da irretroatividade da lei para atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Ademais, referido ato normativo cria obrigações para a Administração Municipal, fixando-lhe condutas.

Aponta como violados os arts. 5º, 47, II, XI, XIV e XVIII e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei teve a vigência e a eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 144/145).

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações (fls. 159/162).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 155/157).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente. Vejamos.

A Lei n. 2.153, de 09 de novembro de 2011, do Município de Castilho, revogou as leis municipais ns. 1999, 2000 e 2001/2010, que dizem respeito respectivamente, à outorga sob o regime de concessão da prestação do serviço público de abastecimento de água e esgotamento sanitário do Município de Castilho e da Criação da Agência Reguladora dos Serviços de Água e Esgoto de Castilho (ARSAE) (art. 1º “caput”).

De acordo com o parágrafo único, do art. 1º, os efeitos desta revogação retroagem à data da publicação das leis revogadas.

O art. 2º da Lei n. 2.153/2011, por seu turno, estabelece  que o Prefeito Municipal, a partir da entrada em vigor desta lei, deverá rever os atos administrativos formalizados em consequência da execução das leis revogadas, recompondo-se a ordem jurídica violada e o patrimônio ao erário público eventualmente lesado.

Por fim, o art. 3º da Lei 2.153/2011 determina que o responsável pelo controle interno da administração municipal, a procuradoria jurídica do município e o legislativo deverão, num prazo máximo de 30 dias, iniciar os procedimentos judiciais, administrativos disciplinares e de responsabilização político-administrativa cabíveis.

Como se pode observar, por intermédio da lei em análise, os munícipes de Castilho, ao revogarem as Leis ns. 1999, 2000 e 2001/2010, revogaram a outorga do regime de concessão da prestação do serviço público de abastecimento de água e esgotamento do Município de Castilho e da criação da Agência Reguladora dos serviços de Água e Esgoto de Castilho.

Abstraindo dos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta inconstitucional, por interferir na realização da gestão administrativa do Município.

Assim é que a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem nos seguintes termos:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programa de execução do serviço público municipal de fornecimento de água e esgoto.

Afinal, cabe ao Poder Executivo o início do processo legislativo relativo em relação à execução de serviços públicos municipais.

Com efeito, a iniciativa do processo legislativo em relação ao funcionamento de serviços públicos é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do Processo Legislativo, São Paulo, Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados, direta ou indiretamente. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Dês. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Dês. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Dês. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Dês. Paulo Shintate).

 

 

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.153, de 09 de novembro de 2011, do Município de Castilho, que “dispõe sobre a declaração de nulidade de leis municipais”.

São Paulo, 4 de abril de 2012.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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