Parecer
Processo n. 0298409-47.2011.8.26.0000
Requerente: Prefeitura Municipal de Euclides da Cunha Paulista
Objeto: § 3º do art. 82 da Lei Orgânica Municipal, acrescido pela Emenda à Lei Orgânica Municipal n. 02, de 17 de outubro de 2011, de Euclides da Cunha Paulista
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Expressões do § 3º do art. 82 da Lei Orgânica Municipal, acrescido pela Emenda à Lei Orgânica Municipal n. 02, de 17 de outubro de 2011, de Euclides da Cunha Paulista.
1. É admissível a lei estabelecer piso remuneratório para servidores públicos, vedada a vinculação do vencimento a múltiplos de salário mínimo e ao próprio salário mínimo.
2. Expressões do § 3º do art. 82, da Lei Orgânica Municipal, acrescido pela Emenda à Lei Orgânica Municipal n. 02, de 17 de outubro de 2011, agride o inciso XV do art. 115 da Constituição Estadual porque, além de estabelecer piso remuneratório, vincula remuneração de servidor público ao salário mínimo, em desobediência ao disposto na Constituição Federal (art. 7º, IV), expressamente referida na parte final do preceito enfocado.
4. Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.
5. Declaração de inconstitucionalidade das expressões “permanecerá em 1,5 (um e meio) salário mínimo” e “será de 01 (um) salário mínimo”, constantes do § 3º do art. 82 da Lei Orgânica Municipal, acrescido pela Emenda à Lei Orgânica Municipal n. 02/2011, de Euclides da Cunha Paulista.
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Euclides da Cunha Paulista impugnando à expressão “permanecerá em 1,5 (um e meio) salário mínimo” constante no § 3º do art. 82 da Lei Orgânica do Município acrescido pela Emenda à Lei Orgânica Municipal n. 02/2011, de Euclides da Cunha Paulista que vincula o vencimento de servidor público ao salário mínimo e múltiplos de salário mínimo, alegando afronta aos art. 7º, IV, da Constituição Federal, art. 3º da Lei n. 7.789/89, e art. 115, XV, da Constituição Estadual.
A liminar foi deferida para suspender a eficácia da Emenda n. 02, de 17 de outubro de 2011, à Lei Orgânica de Euclides da Cunha Paulista, na parte que dispõe “permanecerá em 1,5 (um e meio) salário mínimo” do Estado de São Paulo” (fl. 25/26).
A Câmara Municipal defendeu a constitucionalidade da Emenda à Lei Orgânica impugnada (fls. 33/35).
A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da intervenção no processo (fls. 91/92).
É o relatório.
Preliminarmente, sobre a possibilidade de se reconhecer a inconstitucionalidade ex officio, deve-se lembrar que, nas ações diretas de inconstitucionalidade, a causa de pedir é aberta, ou seja, o órgão julgador não fica vinculado às razões constantes da demanda, podendo decidir por fundamentos estranhos a ela.
Do mesmo modo, não se atém ao pedido, sendo-lhe permitido declarar a inconstitucionalidade de dispositivos não expressamente impugnados, com o que assegura a integridade da ordem jurídica.
Quando isso ocorre, não há julgamento ultra ou extra petita, mas mero atendimento à finalidade do processo objetivo (RE 219934 ED, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2004, DJ 26-11-2004 PP-00006 EMENT VOL-02174-03 PP-00436 RT v. 94, n. 835, 2005, p. 151-155 RTJ VOL 00192-02 PP-00722).
Feito esse registro, passemos a analisar o mérito da presente ação.
O processo objetivo de fiscalização
abstrata, concentrada e direta de constitucionalidade de leis e atos normativos
municipais é de competência
exclusiva do Tribunal de Justiça do Estado e tem como único parâmetro a
Constituição Estadual, nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal, ainda
que reproduzindo ou imitando preceito da Constituição Federal, sendo
insuscetível, ademais, o contraste frontal com preceitos da Constituição ou de
leis infraconstitucionais.
Se
é certo que o piso salarial lato sensu
dos servidores públicos não pode ser inferior ao salário mínimo, nem por isso
se legítima a vinculação de seu vencimento ao salário mínimo. Neste sentido
manifesta a doutrina:
“A Constituição garante aos
trabalhadores em geral, e, por decorrência de seu regime jurídico, aos
empregados públicos, salário-mínimo e piso salarial (art. 7°, IV e V). Quando
tratou dos servidores públicos, estendeu-lhes o salário-mínimo no art. 39, §
3°, e, no mais, o estabelecimento da relação entre a maior e a menor
remuneração (art. 39, § 5°), entendendo-se que esse piso (salário-mínimo) é
direito fundamental social de todo o trabalhador público ou privado, e nada
impede que constituições ou leis estaduais (como a Constituição de Estado de
Santa Catarina no art. 27, I) ou leis municipais cunhem regra de
inadmissibilidade da percepção de subsídios ou vencimentos em valor inferior ao
salário-mínimo, porque isso é inerência do sistema, tanto que o Supremo
Tribunal Federal explicitou que o salário-mínimo é constitucionalmente previsto
como piso remuneratório do servidor público, e, destarte, a lei não poderá
fixar valor inferior a esse piso. O que não é tolerado é o emprego do salário-mínimo como
indexador dos vencimentos dos servidores públicos (Supremo Tribunal Federal,
Súmula Vinculante 04).
Na Lei n. 8.112/90, o direito de
percepção de vencimentos iguais ou superiores ao salário-mínimo refere-se ao
vencimento, isto é, ao padrão, a remuneração básica, conforme se infere de seus
arts. 40 e 41. Com efeito, o art. 40 enuncia que o vencimento é a retribuição
pecuniária pelo exercício de cargo público e seu parágrafo único que nenhum
servidor receberá, a título de vencimento, importância inferior ao
salário-mínimo, enquanto o art. 41 conceitua remuneração no sentido de
vencimentos, isto é, o vencimento do cargo efetivo acrescido das vantagens
pecuniárias permanentes. Entretanto, a orientação pretoriana comunga de
sentimento mais amplo, proclamando que o piso se relaciona à remuneração total
do servidor público, e não apenas ao seu vencimento-base ou padrão, o que é
mais vantajoso para o servidor público.
A vinculação de um piso salarial
conferido a uma carreira do funcionalismo público a múltiplo de salários
mínimos é defesa porque ofende o art. 7°, IV, in fine, da Constituição Federal, assim como o reajuste automático
vinculado a indexadores futuros por implicar proibida vinculação de receita de
impostos com despesa pública (art. 167, IV, Constituição), porque, para além,
isso importaria em suprimir a reserva legal e a iniciativa legislativa
reservada para promoção da revisão de vencimentos. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal editou
a Súmula Vinculante 04, estabelecendo que “salvo os casos previstos na Constituição Federal, o salário mínimo não
pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor
público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. Por
igual, padece de inconstitucionalidade “a estipulação de piso remuneratório que provoque a automática majoração dos
vencimentos do cargo público vinculado, sempre que ocorra aumento do estipêndio
devido a categoria funcional erigida pelo legislador comum a condição de
paradigma (cargo público vinculante), incide na vedação constitucional que
desautoriza a vinculação de vencimentos para efeito de remuneração de pessoal
do serviço público’(...)” (Wallace Paiva Martins Junior. Remuneração dos agentes públicos, São Paulo: Saraiva, 2009, pp.
167-169, n. 26).
Como
dito, o piso se relaciona à remuneração total do servidor público, e não apenas
ao seu vencimento-base ou padrão (STF, AI-AgR 418.572-SP, 1ª Turma, Rel. Min.
Ellen Gracie, 22-04-2003, v.u., DJ 09-05-2003, p. 55; STF, RE-AgR 304.842-PE,
2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, 12-11-2002, v.u., DJ 19-12-2002, p. 118),
mas não pode servir como técnica de reajuste automático (STF, ADI-MC 1.070-MS,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 23-11-1994, v.u., DJ 15-09-1995, p.
29.507), pois, a vinculação de salário profissional a múltiplos do salário
mínimo viola o art. 7º, IV, da Constituição Federal (STF, AI-AgR 357.477-PR, 1ª
Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 27-09-2005, v.u., DJ 14-10-2005, p. 09;
STF, RE-AgR 292.659-PR, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 26-06-2001, v.u.,
DJ 31-08-2001, p. 62; STF, RE 273.205-PR, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves,
26-02-2002, v.u., DJ 19-04-2002, p. 62). E, com maior ênfase, proclama:
“POLICIAL MILITAR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO.
SOLDO. COMPLEMENTAÇÃO. ACÓRDÃO QUE LHE RECONHECEU O DIREITO DE TER AS VANTAGENS
CALCULADAS COM BASE NO SALÁRIO MÍNIMO. Conquanto o salário mínimo seja
constitucionalmente previsto como piso remuneratório do servidor público, a
teor da norma do art. 39, § 2º, c/c o art. 7º, IV, da Constituição, disso não
resulta que a remuneração do pessoal da Administração Pública possa ser fixada
em múltiplos do referido índice, sem ofensa aos princípios constitucionais
acima apontados (ADI 45, Rel. Min. Celso de Mello). Recurso extraordinário
conhecido e provido” (STF, RE 204.645-ES, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão,
24-11-1998, v.u., DJ 23-04-1999).
“AGRAVO REGIMENTAL
Invocável,
ainda, o teor da Súmula Vinculante n. 04 do Supremo Tribunal Federal:
“Salvo nos casos previstos na
Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de
cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído
por decisão judicial”.
Averbe-se,
por oportuno, que a solução da lide não transita pelo contraste da lei local
com a súmula vinculante. A teor do art. 103-A, da Constituição Federal,
implantado pela Emenda n. 45/04 e da Lei n. 11.417/06, a eficácia vinculante da
súmula se dirige exclusivamente a atos administrativos ou decisões judiciais,
não a atos normativos, motivo que indica a persistência do interesse de agir.
A
redação do § 3º do art. 82, da Lei Orgânica Municipal, acrescido pela Emenda à
Lei Orgânica Municipal n. 02/2011, de Euclides da Cunha Paulista, no tocante às
expressões “permanecerá em 1,5 (um e meio) salário mínimo” e “será de (01) um
salário mínimo”, agridem frontalmente o inciso XV, do art. 115, da Constituição
do Estado de São Paulo – aplicável por obra de seu art. 144 – em sua redação
vigente ou pretérita (que é substancialmente idêntica) porque, para além de
estabelecer piso remuneratório, vincula remuneração de servidor público ao
salário mínimo em desobediência ao disposto na Constituição Federal (art. 7º,
IV), expressamente referida na parte final do preceito enfocado.
Ademais,
a sujeição à variação do valor do salário mínimo implica vilipêndio à autonomia
municipal e à iniciativa reservada do Chefe do Poder Executivo local e ofensa
ao princípio da reserva legal para fixação e reajuste da remuneração do
servidor público, patenteando agressão aos arts. 5º, § 1º, 24, § 2º, 1, e 115,
XI, da Constituição Estadual, aplicável na órbita municipal ex vi de seus arts. 144 e 297.
Destarte,
opino pela declaração de inconstitucionalidade das expressões “permanecerá em
1,5 (um e meio) salário mínimo” e “será de 01(um) salário mínimo”, constantes do
§ 3º do art. 82 da Lei Orgânica do Município acrescido pela Emenda à Lei
Orgânica Municipal n. 02/2011, de Euclides da Cunha Paulista.
São Paulo, 03 de abril de
2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb