Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0299391-61.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Cândido Mota

Objeto: Lei nº 1.825, de 17 de novembro de 2011, do Município de Cândido Mota

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 1.825, de 17 de novembro de 2011, do Município de Cândido Mota que “autoriza o Poder Executivo a criar programa de alimentação do servidor público municipal – PAS, e dá outras providências”. Projeto originado na Câmara Municipal. Violação da reserva de iniciativa quanto ao regime jurídico dos servidores (art. 24, §2º, n. 4, da Constituição Estadual) e da regra da separação de poderes (art. 5º da Constituição Estadual) e do art. 25, da Constituição Estadual. Parecer pela procedência.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Cândido Mota, tendo por objeto a Lei nº 1.805, de 17de novembro de 2011, do Município de Cândido Mota, que “autoriza o Poder Executivo a criar o Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal – PAS, e dá outras providências”.

Sustenta o autor, em síntese, que a legislação impugnada, de autoria parlamentar, é inconstitucional por contrariar o princípio da separação dos poderes. Aponta como violados os arts. 5º, 154, I e II e 167,  todos da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 27/29).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações             (fls. 39/40 e 43/46).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 49/51).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei 1.805, de 17 de novembro de 2011 do Município de Cândido Mota, que “autoriza o Poder Executivo a criar o Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal - PAS, e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica autorizado o Poder Executivo a criar o Programa de Alimentação do servidor Público Municipal – PAS, destinado aos servidores públicos do Município de Cândido da Mota.

I- o valor da verba alimentícia será de R$ 140,00 (cento e quarenta reais) mensalmente, através de cartão eletrônico.

II- a abrangência deste programa será estendido aos servidores públicos municipais que estejam inclusos no Quadro de Pessoal de Carreira da prefeitura Municipal de Cândido Mota, aos inativos e pensionistas excetuando os cargos de confiança ou em comissão ou de mandatos eletivos;

III- por se tratar de verba com natureza de ajuda alimentícia, nenhum encargo ou desconto incidirá sobre o valor da mesma que será realizada integralmente.

§ 1º - O Poder Executivo, às suas expensas, contratará empresa especializada em serviço de cartão eletrônico personalizado ao servidor municipal, o qual utilizará o cartão eletrônico mediante senha fornecida, para comprar mantimentos nos estabelecimentos cadastrados, previamente pela empresa contratada.

§ 2º - O cartão eletrônico conterá o nome e código funcional do servidor, a logomarca do município e mencionará logo abaixo o Programa de Alimentação do servidor Público Municipal – PAS.

§3º - o valor dessa verba alimentícia será devido a partir de 1º (primeiro) de maio de 2011 (dois mil e onze).

Art. 2º - No Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal - PAS, a parcela paga in natura pela Prefeitura de Cândido Mota não tem natureza salarial, não se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos, não constituirá base de incidência de contribuição previdenciária e nem se configura rendimento tributável do servidor.

Art. 3º - A empresa contratada, administradora do cartão, obriga-se a acrendenciar todos os estabelecimentos comerciais de venda de mercadorias alimentícia situados no Município de Cândido Mota e cadastrados como contribuintes à Fazenda Municipal, como supermercados, mercados, mercearias, padarias, açougues, peixarias, verdurões, frutarias, quitandas e similares.

§ 1º - O estabelecimento credenciado deixará à vista dos consumidores que integra a rede de cartões eletrônicos da empresa responsável por sua administração, no Programa de Alimentação do servidor Público Municipal – PAS.

§2º - É vedado ao estabelecimento credenciado vender bebidas alcóolicas ou cigarros no cartão do Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal –PAS.

§ 3º - O estabelecimento credenciado que for autuado vendendo bebidas alcóolicas ou cigarros no cartão será descredenciado do serviço, além da incidência da multa de 01 (um) salário mínimo mensal em vigor no Estado de São Paulo.

§ 4º - O estabelecimento credenciado para o Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal – PAS é obrigado a deixar a vista do consumidor o seguinte aviso: “Este estabelecimento está proibido de vender bebidas alcóolicas e cigarro no cartão do Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal-PAS“, sob pena de descredenciamento e multa de 01 (um) salário mínimo mensal em vigor no Estado de São Paulo”. 

 

 Art. 4º - Até o dia 20 (vinte) de cada mês, no caso de alteração no Quadro de Pessoal da Prefeitura Municipal, o setor de Recursos Humanos enviará à empresa administradora do cartão eletrônico o nome do servidor público municipal, com o respectivo número e código funcional, para constar ou excluir do cadastro do PAS. O pagamento do crédito ao beneficiário do Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal – PAS até o dia 1º (primeiro) do mês seguinte.

Art. 5º - O valor do PAS indicado no Artigo 1º desta Lei será, no mínimo, reajustado anualmente pelo Índice de Preços do Consumidor Ampliado – IPCA, ou outro que vier a substituí-lo, registrado no período de 1º (primeiro) de janeiro a 31 (trinta e um) de dezembro do ano anterior, podendo, porém ser estabelecido um valor superior a este reajuste substituindo-o e tido como aumento real do seu valor.

Art. 6º - Observadas as disposições da presente Lei, fica o Poder Executivo autorizado a aderir ao Programa de Alimentação do Trabalhador – PAT, do Ministério do Trabalho.

Art. 7º - O benefício desta Lei fica estendido também ao 13º (décimo terceiro) salário.

Art. 8º - As autorizações previstas neste Lei estendem-se:

I- às Autarquias Municipais;

II- ao Poder Legislativo.

Art. 9º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão à conta de dotação orçamentária a serem abertas a partir da aprovação desta Lei.

Art. 10º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, revogada a Lei n. 1532/2011, de 11 de abril de 2011, e revogada a Lei n. 1333/2008, de 21 de fevereiro de 2008”.

Referida legislação nasceu no Poder Legislativo, quando é certo que não compete aos Vereadores projetar direito novo no que diz respeito à concessão de benefícios para servidores públicos (ativos ou inativos).

É norma inconstitucional, portanto, à luz dos artigos 5º; 24, § 2º, 4; 25; 37 e 47, incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

Diz a doutrina e a jurisprudência que cabe ao Poder Executivo primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Decorre da sistemática da separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo.

A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art. 24, § 2º, n. 1 a 6, da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art. 61, §1º, inciso II, da Constituição Federal.

De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina caber ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47, incisos II e XIV).

Deste modo, no caso em exame, há tanto violação da reserva de iniciativa, como do princípio da separação de poderes.

O legislador municipal, na hipótese analisada, dispôs sobre benefícios de servidores públicos municipais, isto é, a respeito de um dos aspectos que envolvem seu regime jurídico. Cuida-se, no entanto, de matéria de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo, nos moldes do art. 24, § 2º, 4 da Constituição Paulista (que reproduz o art. 61, §1º, II c da Constituição Federal).

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes.

Essa é a orientação desse E. Tribunal de Justiça nos casos análogos:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei Municipal que autoriza o Executivo a fornecer aos servidores públicos municipais, ativos, inativos, pensionistas, complementados e complementadas pensionistas, uma cesta básica de alimentação - Matéria de iniciativa parlamentar que se refere a administração pública, cuja gestão e de competência do Prefeito - As regras da Constituição Federal sobre iniciativa reservada são de observância compulsória pelo Estado e pelos Municípios - Na espécie, prerrogativas exclusivas do Prefeito Municipal foram atingidas pela lei atacada, que interferiu na competência legislativa reservada ao Chefe do Executivo local, ao invadir a seara de organização, direção e contratação dos serviços e fornecimentos - Violação dos arts 5º, ‘caput’ e 24, § 2°, 1 e 4 da CE/89. Ação julgada procedente” (ADIN 157.098-0/7, j. 27/6/2008, rel. Henrique Nelson Calandra)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Expressão constante do Art. Io da Lei Municipal n. 3.526/2005, de Lençóis Paulista - Acréscimo, por emenda parlamentar, que restringe a concessão de cestas básicas aos servidores públicos municipais a determinado teto salarial - Inadmissibilidade - Matéria cuja iniciativa legislativa e privativa do chefe do Poder Executivo - Art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual - Auto-organização dos municípios está subordinada aos ditames das Constituições federal e estadual - Configurada a afronta ao princípio da separação de poderes - Emenda a projeto de lei possui caráter acessório, descabendo seu uso indiscriminado - Ação direta julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade da expressão acrescentada por emenda parlamentar” (ADIN 130.674-0/9, j. 21/9/2007, rel. Maurício Ferreira Leite).

Nota-se, por fim, que a lei gera despesa, sem a indicação da fonte. Nesse ponto colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

Esse C. Órgão Especial, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infrigem esses comandos:

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

          Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"... insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente autorizativa é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a ...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei 1.805, de 17 de novembro de 2011, do Município de Cândido Mota, que “autoriza o Poder Executivo a criar o Programa de Alimentação do Servidor Público Municipal - PAS, e dá outras providências”.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb