Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0301346-30.2011.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Mirassol

Objeto: inconstitucionalidade da Lei n. 3.441, de 30 de setembro de 2011, do Município de Mirassol

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 3.441/11 do Município de Mirassol, de iniciativa parlamentar. Restrições similares às da “Lei Ficha Limpa” no provimento de cargos comissionados. Alegações de violação da separação de poderes e de invasão da competência normativa federal. Improcedência da ação.  1. Parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica ou da Constituição Federal. 2. Lei municipal que dispõe sobre a nomeação para cargos de provimento em comissão, adotando restrições semelhantes às da “Lei Ficha Limpa”, não invade a competência normativa federal (art. 22, I, CF), porque não tratou das matérias ali enumeradas, e não cuidou de eleições, mandatos, responsabilidade criminal, situando-se no espaço da autonomia municipal (arts. 29 e 30, CF). 3. O Chefe do Poder Executivo tem iniciativa legislativa reservada para o provimento de cargos públicos (art. 24, § 2º, 1 e 4, CE; art. 61, § 1º, II, a e c, CF), mas, a exigência de honorabilidade para o provimento de cargos públicos, tal e qual a restrição ao nepotismo, se situa no raio de incidência do princípio da moralidade administrativa (art. 37, CF; art. 111, CE), não impondo a observância dessa reserva. 4. Ademais, a reserva de iniciativa legislativa é referente aos requisitos para o provimento de cargos públicos, e não para as condições para provimento de cargos públicos, matéria que está no domínio da iniciativa legislativa comum ou concorrente, porque não se refere ao acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício. 5. Improcedência da ação.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Prefeito do Município de Mirassol impugnando a Lei n. 3.441, de 30 de setembro de 2011, do Município de Mirassol, de iniciativa parlamentar, que, em síntese, estabelece restrições similares às da “Lei Ficha Limpa” no provimento de cargos comissionados na Administração Pública Municipal, sob alegação de violação ao princípio da separação de poderes e de invasão da competência normativa da União (fls. 02/13).

2.                Concedida liminar (fls. 22/23), o Presidente da Câmara Municipal de Mirassol prestou informações defendendo a constitucionalidade do ato normativo (fls. 27/33) e juntando cópia do respectivo processo legislativo e das providências decorrentes de sua execução (fls. 34/490).

3.                A douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado (fls. 493/495).

4.                É o relatório.

5.                O parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual, consoante dispõe o art. 125, § 2º, da Constituição Federal, razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica ou da Constituição Federal.

6.                Merece repulsa a alegação de invasão da competência normativa da União.

7.                A lei não impôs proibições de ordem civil, penal e eleitoral, e, por essa razão, não é possível concluir que tratou de matérias que são reservadas à competência normativa federal disposta no art. 22, I, da Constituição Federal, na medida em que apenas estabeleceu condições para o provimento de cargos comissionados no âmbito municipal, e não dispôs sobre eleições, mandatos, responsabilidade criminal etc.

8.                Portanto, laborou na esfera de competência própria do Município, atuando no círculo de atribuições decorrente de sua autonomia emergente dos arts. 29 e 30 da Constituição Federal, ao vedar a nomeação para cargos de provimento em comissão de pessoas inseridas nas situações nela descritas, cominar nulidade à sua infringência e revogação de atos pretéritos, e estabelecer mecanismos de sua atuação e de controle.

9.                 Com relação ao outro argumento, consistente em violação ao princípio da separação de poderes, convém obtemperar que não se situa no domínio da reserva da Administração ou da discricionariedade administrativa o estabelecimento de condições para o provimento de cargos públicos. É tradicional no direito brasileiro cláusula da reserva legal a respeito do assunto, e que se encontra hospedada no art. 37, I, da Constituição Federal, reproduzida no art. 115, I, da Constituição do Estado.

10.              Oportuno lembrar, ainda, salutar admoestação do Marques de São Vicente, mui apropriada ao caso:

“A arte e o tino do govêrno está em assinar aos homens que reunem o talento à probidade o lugar que lhes compete, não só para que o auxiliem, como para que não lhe criem embaraços e não procurem abrir carreira, forçando as traves que lhe são opostas” (José Antonio Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro e análise da Constituição do Império, Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, pp. 379-433, RT 731/678).

11.              O ponto central de discussão reside, sob o color do princípio da separação de poderes, em decifrar se a iniciativa legislativa para o provimento de cargos comissionados é reservada ou não ao Chefe do Poder Executivo.

12.              A primeira impressão, extraída do art. 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual, que reproduz o art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição Federal, tende a uma resposta positiva.

13.              Porém, essa questão recebeu diferente tratamento em situação absolutamente similar, consistente na edição de regras de combate ao nepotismo, afinal, a exigência de honorabilidade para o provimento de cargos públicos é algo que se situa no raio de incidência do princípio da moralidade administrativa (art. 37, Constituição Federal; art. 111, Constituição Estadual), base que une a legislação reacionária ao nepotismo e de adoção da “ficha limpa” no provimento de cargos públicos comissionados.

14.              Se, como naquela hipótese semelhante, concluiu-se que o princípio da moralidade administrativa era bastante para orientar a criação e a interpretação de norma restritiva, a solução deste caso deve adotar idênticas premissas, lembrando-se que com razão Diógenes Gasparini não visualizou a proibição do nepotismo nas matérias da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (“Nepotismo político”, in Corrupção, Ética e Moralidade Administrativa, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, pp. 73-98).

15.              E no julgamento da questão o Supremo Tribunal Federal decidiu que:

“a norma insculpida no § 1º do artigo 61 da Carta Federal, mais precisamente na alínea ‘a’ do inciso II, há que ter alcance perquirido sem apego exacerbado à literalidade. É certo que são da iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração (...) Evidentemente, está-se diante de  preceitos jungidos à atividade normativa ordinária, não alcançando o campo constitucional, porquanto envolvidos aqui  interesses do Estado de envergadura maior e, acima de tudo, da necessidade de se ter, no tocante a certas matérias, trato  abrangente a alcançar, indistintamente, os três Poderes da República. Assim o é quanto ao tema em discussão. Com a Emenda Constitucional nº 12 à Carta do Rio Grande do Sul, rendeu-se homenagem aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da isonomia e do concurso público obrigatório, em sua acepção maior. Enfim, atuou-se na preservação da própria res pública. A vedação de contratação de parentes para cargos comissionados - por sinal a abranger, na espécie, apenas os cônjuges, companheiros e parentes consanguíneos, afins ou por adoção até o segundo grau (pais, filhos e irmãos) - a fim de prestarem serviços justamente onde o integrante familiar despontou e assumiu cargo de grande prestígio, mostra-se como procedimento inibidor da prática de atos da maior repercussão. Cuida-se, portanto, de matéria que se revela merecedora de tratamento jurídico único - artigo 39 da Carta de 1988, a abranger os três Poderes, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, deixando-se de ter a admissão de servidores públicos conforme a maior ou menor fidelidade do Poder aos princípios básicos decorrentes da Constituição Federal” (STF, ADI 1.521-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 12-03-1997, m.v., DJ 17-03-2000, p. 02, RTJ 173/424).

16.              Esse posicionamento é perfilhado no Supremo Tribunal Federal (STF, RE 183.952-RS, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 19-03-2002, v.u., DJ 24-05-2002, p. 69; STF, RE 372.911-SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 03-04-2007, DJ 08-06-2007, p. 94) e neste egrégio Tribunal de Justiça (TJSP, ADI 71.670-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Fortes Barbosa, 17-10-2001; TJSP, ADI 148.788-0/5-00, Órgão Especial, Rel. Des. Ivan Sartori, v.u., 19-09-2007).

17.              Há que se ponderar, nesta quadra, a diferença entre requisitos para o provimento de cargos públicos - matéria situada na iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (STF, ADI 2.873-PI, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 20-09-2007, m.v., DJe 09-11-2007, RTJ 203/89) - e condições para o provimento de cargos públicos - que não se insere na aludida reserva, e está no domínio da iniciativa legislativa comum ou concorrente entre Poder Legislativo e Poder Executivo – porque não se refere ao acesso ao cargo público, mas, à aptidão para o seu exercício.

18.              Por fim, não se vislumbra ângulo para o sucesso da ação mesmo em face da norma que assina prazo para exonerações de nomeações pretéritas em descompasso com a lei (art. 6º). Como já julgado neste egrégio Tribunal de Justiça em fundamentação integralmente apropriada à hipótese, “não terá sentido algum proibir o administrador de praticar o nepotismo, a não ser se for também para impor àquele a coibição da prática que estiver em curso, fazendo-o exonerar ou demitir os parentes ou rescindir seus contratos de trabalho, o que, data venia, não deixa de ser disposição para o futuro, com força de extirpar qualquer sentido retroativo da norma em exame” (TJSP, ADI 148.484-0/8-00, Órgão Especial, Rel. Des. Palma Bisson, m.v., 02-04-2008).

19.              Opino pela improcedência da ação.

 

                   São Paulo, 02 de março de 2012.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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