Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0333417-22-2010 (990.10.333417-5)

Requerente: Prefeito do Município de Mogi Guaçu

Objeto: Lei nº 4.586, de 21 de dezembro de 2009, do Município de Mogi Guaçu

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 4.586, de 21 de dezembro de 2009, que “torna obrigatório no fornecimento de merenda escolar deste Município, a inclusão percentual de 30% de alimentos de origem da agricultura familiar”. Projeto de vereador. Ato de gestão administrativa incompatível com a vocação da Câmara Municipal. Usurpação de funções, com ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 5º da Constituição Estadual. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 4.586, de 21 de dezembro de 2009, que “torna obrigatório no fornecimento de merenda escolar deste Município, a inclusão percentual de 30% de alimentos de origem da agricultura familiar”.

O autor sustenta que, por força dos arts. 184, 188 e 189 da Constituição Paulista, compete ao Estado – e não ao Município – regular o tema tratado na lei impugnada.

Argumenta, em acréscimo, que o fomento à agricultura familiar no campo da merenda escolar já está disciplinado na Lei Federal nº 11.947/2009, tornando despicienda e inoportuna a normatização local.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 28).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 45/48. Afirma que a lei é compatível com o art. 208 da Constituição Federal e com a Lei nº 11.947/09, em relação a qual suplementa a normatização com vista ao interesse local. Pugnou pela improcedência do pedido.

A Procuradoria-Geral do Estado, a seu turno, declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 37/39).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Para a solução da lide, deve-se lembrar, com Alfredo Buzaid, que “o tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento” (Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 22) e que, uma vez instaurada a relação processual do controle concentrado, nada impede que se julgue procedente a ação por causa de pedir diversa da exposta na inicial.

De fato, no julgamento da ADI nº 2.396/MS, a Ministra Ellen Gracie afirmou ser possível “pelos fatos narrados na inicial, verificar[-se] a ocorrência de agressão a outros dispositivos constitucionais que não os indicados na inicial” (Pleno do STF em 08/05/2003. Publicação: DJ de 1/8/2003, p. 100).

Aliás, no julgamento da ADI-MC n. 2396/MS, o Pleno do Supremo, em acórdão relatado pela mesma magistrada, foi mais incisivo: “O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial” (DJ de 14/12/2001, p. 23).

Desse modo, está aberta a possibilidade de se aferir a constitucionalidade da lei impugnada na inicial em face de qualquer dispositivo da Carta Bandeirante, ainda que o autor da ação não o tenha indicado expressamente.

E, no caso vertente, tem-se que a Lei nº 4.586/2009 foi concebida na Câmara Municipal (Vereador Thomaz de Oliveira Caveanha), para compelir a Administração, na aquisição da merenda escolar da rede de ensino público, a “destinar o percentual mínimo de 30% (trinta por cento) da receita dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE do orçamento municipal à compra de produtos de origem da agricultura familiar”.

Um olhar desatento sobre o ato normativo impugnado poderia conduzir à equivocada conclusão de que o legislador local se limitou a repercutir no Município a regra que emana do art. 14 da Lei nº 11.947/09, a seguir transcrito:

Art. 14.  Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas.

Não é o que ocorre, porém, pois as sutis distinções entre as regras constantes de uma e outra lei restringem, no plano local, a discricionariedade do chefe do Poder Executivo. Se este, pela normatização federal deve destinar parte da verba do PNAE para a aquisição de produtos provenientes da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, agora se encontra inibido, por comando emanado da Câmara Municipal, de obter os gêneros alimentícios do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, dado que a lei objurgada não contempla essa possibilidade.

Como se vê, o Poder Legislativo está ditando conduta ao Prefeito, o que configura, data venia, a quebra do postulado da separação dos poderes.

Há quebra do princípio da separação de poderes nos casos, por exemplo, em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes, princípio estatuído no art. 5º da Constituição Estadual, que reproduz o contido no art. 2º da Constituição Federal. Há também não observância do disposto no art. 47 II e XIV da Constituição Paulista.

Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

A lei ainda traz um problema adicional.

Ela contempla no art. 5º, inc. III, uma hipótese de dispensa da observância do percentual mínimo de destinação da verba do PNAE que não foi prevista na Lei nº 11.947/09, aspecto que denuncia o equívoco em que incorre a Câmara Municipal quando pretende se imiscuir nas atribuições do Prefeito.

Não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que reside a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Em conclusão, não é só dispensável (dado que existe Lei Federal sobre o tema), como também se mostra inviável a deliberação legislativa nessa matéria, mormente quando verificado que a iniciativa para a edição da lei partiu de parlamentar. Aquilo que a regra determina para a Administração Pública é algo que se encontra, precisamente, no âmbito da atividade executiva.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.586, de 21 de dezembro de 2009, que “torna obrigatório no fornecimento de merenda escolar deste Município, a inclusão percentual de 30% de alimentos de origem da agricultura familiar”.

 

São Paulo, 29 de abril de 2011.

                                    

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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